A bênção

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Por que o luto? Ela explica que só agora percebeu que estava vestida de preto da cabeca aos pés, e me diz isso dando uma mordida no labio inferior. Sempre que mente, dá essa mordidinha. Veio toda de preto para afirmar sua tristeza. Mas hoje nao é dia.
Nao posso demonstrar tristeza? Ele meu avô. Meu vô. Por que ele faz isso com a gente? Deixo o álbum que me pediu ao seu lado da cama. Tinha que ser no dia do aniversário dele, ele disse, chegue antes de todo mundo:
- Venha com um presente qualquer de embrulho bem bonito e diga que precisa me entregar logo, que tem que ir trabalhar e nao pode esperar ate o horario da visita. Venha cedo cedinho antes dos outros doentes desse quarto acordarem.
- Nao posso fazer isso, vô.
- Traga uma foto da sua vó pra mim. E da sua mãe. Melhor, traga aquele album de fotografias que guardo na segunda gaveta do guarda-roupa. Segunda gaveta de cima pra baixo, ta entendo?
- Vô...
- Repete pra mim.
- Mas,
- Repete.
- Vou trazer o album de fotografias que fica na segunda gaveta do seu guarda-roupa. A segunda gaveta de cima para baixo.
- Isso, quero me despedir.
- Por que eu, vô?
Ela dispensa o album de fotografias na cama. Pego com esforço da fraqueza. O album esta embrulhado para presente, como pedi. Retiro as agulhas que carregam soro para o meu braço e as deixo penduradas a balançar. Ela faz como se fosse me impedir, mas vendo-me tremer as mãos prefere segurar o álbum em meu colo e rasgar seu embrulho. O sol começa a dar luz ao dia e secar a janela úmida da chuva da noite passada. As fotos passam e vou explicando as lembranças.
Lembra desse dia? Foi a primeira vez que viu como é matar um porco e fazer linguiça, lembra? Depois disso nunca mais quis comer linguiça, ainda ta com essa frescura?, ele vai falando assim e penso por um momento que esqueceu o que me fez prometer, E esse outro dia, aqui, sua mae como era bonita quando nova, e seu pai era um magricelo. Suas maos tremem menos hoje.
Fui falando pra ela ficar mais tranquila, na verdade, nao queria me despedir de ninguém, queria é mostrar como a minha vida foi boa pra acalmar a alma da minha neta. Digo que é a hora. A gente tem pouco tempo ate o médico chegar. Quase dois anos nessa cama, dois anos. A cirurgia nunca que vai acontecer. Os medicos nem olham na minha cara. Querem que eu morra? Eu morro. Toco os calos das minhas mãos nas bochechas da minha neta. Uma vida inteira construindo casa para os outros para morrer em uma cama de hospital. Vivi pros outros, mas a morte é minha. Tiro um dos travesseiro debaixo da minha cabeça e o entrego nas maos dela. Nao vai pedir bênção? Minha herança é desgraça.
Me aproximo mais e tremo de lagrimas. Peito de chumbo. Ar cortado rente a garganta. Da ultima vez, ele tentava me explicar que teve uma vida boa, e insistia:
- Faz isso por mim no meu próximo aniversário?
- Por que no seu aniversário, vô? Nao tem data mais triste?
- Esse é meu presente, comverse com sua mae depois.
- É pra falar o que fiz?... farei?...
- Nunca. Ela nao vai entender.
- Tambem nao... e sou a neta... sua...
- Sim, e a mais velha tem lá suas responsabilidades.
- Vô, o senhor vai melhorar.
- Nao vou, os medicos sabem que nao vou. Quero chegar aos seus de pés descalços e cabeça erguida.
- Vô...
- Nao chora. Sei que é forte. A mais forte dessa familia...
- Mas...
- A gente morre é pra deixar saudades.
Pego o travesseiro e o pressiono com força desanimada no rosto do meu avô. Suas maos apertam nas minhas pra enterrar a dúvida. Insistimos. Comprimo. E estanco minha respiração. Segundos descem arrastados. Imponho meus cotovelos no travesseiro, fecho os olhos, demoro, e escudo suas maos cairem pesadas na cama. Pressiono. Espero mais pra ter certeza. É suficiente? Retiro o travesseiro, e um sorriso desenha paz. Agora, carrego sua dor. Feliz aniversário, vô. Peço a bênção e sinto seus labios mudos reponderem a bênção, minha neta.

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