as mãos sem dedos de Deus

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Se fosse o Gustavo, eu não me preocupava. Só que é o Allan, e o Allan nunca foi de escrever. O Allan nunca foi de fazer teatro. E deixar o menino escrever e atuar...
Olha, sou do tipo que se preocupa. E sei que o Allan não tem talento pra isso. Como que escreve bem sem ler? Como que atua? Nem filme ele vê. Os professores adoraram o texto, ela disse. Mas mãe estraga mesmo os filhos. E que título era aquele? Não se deveria brincar com isso. Quando chego ao teatro, ela já me dispara aquela cara de desgosto que só ela tem com aqueles olhos tremidos e esmiuçados. Penso em dizer que a culpa era do trânsito ou de um paciente de última hora. Mesmo que fosse verdade, ela não acreditaria. Me olharia com aquela cara de depois a gente conversa e eu evitaria a tal conversar a noite toda até ela dormir e fingirmos que não tínhamos nada pra discutir da noite passada e o nosso café da manhã ter aquela cara amarga que só ela tem com aquele olhos apertados de piscada nervosa.
- Cinco anos.
- Seis.
- Como seis?
- Foi no mesmo ano que eu tava pra prestar o vestibular.
- E vai tentar esse ano de novo?
- Já faz três anos que não tento, Bruno.
- E o serviço lá na loja do pai, como tá?
- A mesma bosta.
- É?
- Mas agora sou gerente.
- Atá.
- Arram.
- Bacana
A peça começou. Allan até fala bem ao lado do colega que não sei  nome. Eles não percebem que acabei de chegar.parevem dois amigos conversando. Bebem em umas lá tinhas sem rótulos, deve ser para não parecer propaganda. O cenário não é um dos melhores. Tem umas criptas, uns crucifixos mal desenhados em um papel de cartolina ao fundo; se fosse o Gustavo, ele teria pensando em fazer uma projeção com o datashow da escola. É isso que digo, Allan não pensa direito escola quer sair fazendo como se a vida se resolvesse sozinha.
- E como que tá a Bruninha, falando já?
Outro nome péssimo. Quem faz isso hoje em dia? Não é verossímil. Tomo um tainha no ombro e Sandra me pede pra calar a boca e parar de bufar com o nariz.
- Falando e andando. Não viu o vídeo que postei dela?
Respondo que estou sem paciência pra gracinha hoje.
- Não.
Ela me pede pra calar a boca de novo.
- Você tá sem Internet lá na sua mãe?
- Não,  tô sem Facebook mesmo.
- Por que isso?
- Falsidade. Aguento aquela desgraça não. Felicidade demais.
- Você xingava menos quando eu morava lá.
- E felicidade demais e deixa triste pra caralho.
E ele ainda xinga...
- Larga de besteira.
- Seis Paulo tivesse aqui...
- Seis ele tivesse aqui, ele estaria bebendo com a gente. Toma. Acaba logo essa cerveja que já deve tá quente. Ah,joga fora, toma outra aqui, temos ainda umas seis.
- Bebemos metade já?
- Sim, senhor.
- Seu o Paulo estivesse aqui, ele... O desgraçado morreu e nem me ensinou a dançar.
- E eu a pescar.
- Ninguém pesca mais hoje em dia.
- Mas ele gostava dessas coisas. E uma das coisas que eu nas gostava no Paulo era isso, sabe? O mesmo carro gostava de ficar lá pescando quietinho, ia pra boate e sabia conversar com a mulherada.
- Não gosto de boate.
- O cara era bom.
- Você sabe dançar?
- Um pouco. O que eu sei o Paulo me ensinou, dava pra quebrar o galho...
- Lembra dele dançando pela casa?
- Qual era a música mesmo?
- Losing my religion do REM.
Olho assustado para Sandra, ela devolve o meu olhar como se tivesse vibrando com a minha surpresa. Tento imaginar o que aconteceu com esses dois pra ficarem bebendo e chorandk mágoa no túmulo do irmão.
- Era essa musica mesmo... cara, ele dançava com mamãe,  faxia todo mundo rir.
Voce sabia disso? Pergunta Sandra.
- Eda só a velha coecar a encher o saci dele qe ele botava essa musica no celular e saia dançando, imitando o clipe, com aquele jeitinho todo torto dele...
Nao sei por que esta tao irritado, ela diz. Afinal, é a peca do nosso filho, e ele tem todo direito de escrever o que quiser.
- Nosso irmao animava a casa.
Escrever sobre o Gustavo? Isso sequer era uma opção.
- E ele dançava mais o quê?
Ela insiste pra eu calar a boca e faz aquela cara de quem depois resolvemos isso. Ou seja, o assuno morreria ali.
- Forró... pé de serra... um samaba, ele dancava tudo.
Agora, faço questao de bufar com o nariz.
- E eu pra andar e respirar ja acho complicado.
- Vão um dia que te ensino.
- Voce sempre fala isso, mas nunca ensina nada, vai morrer que nem Paulo e eu vou ficar aqui.
- Nunca mais fala uma merda dessas! Eu vou te ensinar sim, comtratei uma babá pra ficar com a minha menina. Vou tirar um dia. Um dia de irmão, olha, vou até anotar aqui no meu celular pra nao esquecer.
- Voce que sabe. Vai ter paciência?
- A gente tem o sangue do Paulo,  mano. Ja nascemos com jeito.
- Quem tem o sangue dele aqui é só voce.
Sandra abaixa os olhos de vergonha. Nao consigo dizer nada. Nao entendo por que Allan quis expor tanto; sempre dizemls que isso nao importa.
- Voce sabe o que eu quis dizer.
- Às vezes, me sinto muito proximo dele mesmo...
- Ainda pensa naquelas coisas?
- Sim...
- Olha, voce sabe, voce sabe que mamae nao aguenta
Se dois filhos dela se forem assim.
- Eu sei, Bruno, tô ligado nisso tudo.mas eu entendo por que Paulo se matou.
- Eu nao entendo.
- A vida é uma merda. Fico pensando por que é que Deus fez o mundo tao triste.
- Ta tomando os remédios?
- Deus nao frequenta o paraíso...
- E o médico?
- Sera que Ele joga dados?
- Me fala do médico.
- Os dedos dele nunca que erram numa jogada.
- Chega dessa merda, e o médico?
- Aquele psicólogo é uma merda, desisti.
- Ta vendo? Como é que vai melhorar sem tratamento?
- Bruno, pela última vez, eu nao preciso de tratamento. Nem de remédios. Só tomo essas porcarias porque mamãe tem uma idéia na cabeça. Eu sou assim, sou que nem Paulo,  sou triste mesmo. Algumas pessoas nasceram pra sorrir, outras pra chorar...
- Paulo nunca falaria uma coisa dessas.
- Mas pensava.
- E agora voce deu de saber como é que Paulo pensava?
- Acho que entendo, Bruno, é isso que tô falando... olha, deixa...
Que merda é  que o Allan fez, perguntou pra Sandra,  e sua resposta é vaga. Tenta explicar que não sabia do tamanho da coisa. Como que a escola deixou fazer isso e nos expor? Continuo querendo explicações, mas logo percebo a desinformação dela sobre o Allan ter ido tao longe. Ele foi longe demais. Nao faz nem um ano que o Gustavo se matou e, agora, nosso filho maia novo faz uma peça desse tipo. Me levanto da cadeira e vou embora;  Sandra me impede com aquela expressão timida mordendo o lavio inferior e apertandk as sobrancelhas. Aqueles olhos. Tinha esquecido. Fica comigo, ela me pede, e mesmo que minha vontade seja de sair daqui ou pedir para acabarem com a peça,  nao consigo sair da cadeira.
-  E mamãe, como tá?
- Ta velha. Chata. E resmungona.
- Entao, continua a mesma, né?
- E melhor do que nunca, começou a malhar.
- Quem sabe nao temos um novo papai?
- Tenho até pena do maluco.
Eles se calam. Nao sei se esqueceram o texto ou se aquele silêncio fazia parte da peça. O assunto dos irmaos parece ter acabado e eu me sinto tao incomodado que acabo segurando a mão suada de Sandra.
- Tenho que ir. Quer que te deixe em casa?
- Nao precisa, Bruno. Vou ficar um pouco mais.
- Tem certeza?
- Tô de boa.
- Olha, as coisas vao melhorar, sai dessa.
- Vao sim.
Bruno se aproxima do Allan e, sem jeito, na duvida se abraca ou aperta as mãos,  dao um meio abraco de levw tapinha nas costas.
- Se cuida, diz Bruno.
Antes que Bruno desaparecesse por tras das colinas, Allan se levanta, coloca o celular sobre a tumba de Paulo; uma musica comeca a tocar. Esse ritmo...
Oh, lige is bigger
It's bigger that you
- Me ensina a dançar, Bruno?
And you are not me
The lengths that i will go to
The distance in your eyes
Os irmaos se abraçam. E dançam.
Oh, no i've said too much
I set it up
As cortinas se fecham. Sandra me olha com uma cara indecifrável e, por um momento,  sinto que as saudades do Gustavo foram embora. Vamos, Sandra, enxuga essas lagrimas, temos que aplaudir o nosso filho de pé tambem.

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