Morrer de Fomes

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No quintal, os irmãos dividem tiros: pou, pou, te peguei. Passou raspando, Luca. Pa, pa, viu agora foi! Mas você não morre? Morro não, minha armadura me protege e eu sou mais forte que você, Dick Jones, eu vou me vingar e daí a mãe grita lá da cozinha, quem pegou minhas panelas?
Luca só queria brincar, agora, a mãe nervosa não quer saber de explicação. Luca, você não disse que mamãe deixou você pegar as panelas pra gente brincar? Disse... Aí, Luca, agora a gente tá ferrado!... Mas. Mais é nada. Man, escuta. Vem, deixa que eu falo com a mãe.
Olha, mãe, sei que a senhora vai ficar brava comigo, mas eu só peguei as panelas porque o Luca tava doido pra brincar de Robocop depois do filme que passou na tevê. Então, foi você? Fui sim senhora; a panela era o capacete do Robocop, aqui, toma ela de volta. Não dou conta não, Vitor, eu trabalho o dia todo e ainda tenho que cuidar de vocês. Eu sei mãe, desculpa, mas. Mas nada, cala a boca que tô falando com você, parece que tem o diabo no corpo. Desculpa, mãe. Escuta, menino, o que vou te dizer.
Observando a lua faminta devorar os prédios da cidadezinha lá embaixo, Luca se espanta quando vê o irmão mancando. Mamãe te bateu muito, man? Bateu só um pouquinho, responde Vitor escondendo os braços roxos. Desculpa, man. Tá desculpado, só não faz isso de novo, tá bom
Faço não. Você é um.bom menino, Luca, só que tem que prestar atenção antes de fazer essas coisas, olha, você é o orgulho da mamãe com suas notas altas, você tem que pensar antes de fazer essas coisas, tá bem? Tá sim, man, você é bom. Sou não sei Luca, mamãe vive falando que não sou,  deve ser por isso que lá na escola ninguém gosta de mim. Eu gosto de você. Voce é meu irmão, daí é diferente. Porque é diferente? Deixa; você só me adiantou a surra, hoje a professora disse que quer falar com a mamãe, ela disse que acha que eu tenho déficit de atenção. Que que é dificit? Ela disse que eu não consigo me concentrar, e isso me deixa burro. Mas você. Sou sim, queria ser inteligente que nem você com suas notas altonas. Mas... Luca, tá tudo bem. Tá doendo o braço? Eu não ligo de apanhar, mamãe tá sempre cansada e não quero brigar com ela mais não. Parece que mamãe nasceu trabalhando. Que não papai tava aqui ela trabalhava menos, você não lembra que era novinho. Será que ele volta, man?
Vitor riu dentro de sua tristeza. Encara os olhos do irmão e vê os olhos pretos do pai; onde ele estaria? Dele, os irmãos só herdaram o tom de pele.
Luca, por que a gente não chama aquele menino, qual nome dele mesmo? O magrinho? Isso. O Marco, o nome dele é Marco. Que nome esquisito!, mas, vão lá chamar ele pra brincar com você,  é que tô me achando meio velho. Marco nem foi pra escola hoje. Que aconteceu? Ontem ele tava com muita fome... merendou umas três vezes que tava quase vomitando tudo. Aí, Luca, fala isso não, vão lá ver ele, que ele gosta de brincar com você; sabe onde ele mora? É depois da casa da tia Juci. Tá bem, vou falar com a mamãe que a gente vai visitar a tia e depois a gente vai lá, vou pegar algo pra levarmos; quem sabe um pratinho de arroz? Mas mamãe não vai brigar? Eu falo que é pra gente dividir, mamãe nunca foi de negar comida, e a gente tem que dividir a tristeza com quem é mais pobre que a gente. Viu, man, o diabo nem parece que tá com você agora. É que quando tô com você sempre Luca, parece que meto o diabo no bolso, vem, me dá a mão, vão lá falar com a mamãe? Na nossa família, Luca, sempre, sempre tem um pratinho de arroz sobrando pra abafar a tristeza; e a gente não vai morrer de fomes.

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