A chuva cai serena no peitoral da janela. Confesso que se não
fosse o bendito despertador, eu certamente teria me esquecido de que hoje é segunda, e de que consequentemente, tenho aula.
- Miguel!-...
- Miguel, meu filho, vamos! Você já está atrasado de novo!
- Tá mãe. Já vou descer. Espera aí.
Mesmo depois de tanto tempo, ainda não entendo como não me acostumei com a ideia de ter que ir todos os dias pra aula. Isso é escravidão, certo? Lógico que é. Mesmo estando no último horário e no meu quinquagésimo primeiro sono, meu subconsciente ainda conseguiu, de fininho, gravar o lento professor Joseph dizendo em um determinado momento, que os escravos eram constantemente obrigados a fazer inúmeras tarefas pesadas e tortuosas. O que seria álgebra se não uma tarefa horrenda? E a geometria analítica? De onde aquele demônio saiu?
Em todo caso, queria muito que meus argumentos provassem que ir à escola é uma coisa muito desnecessária, mas que filmes e séries, por outro lado, mostram-se altamente interessantes para a vida humana. Entretanto, mesmo vivendo em uma sociedade democrática, tenho que obedecer às ordens dos meus superiores. Em um caso mais específico, da superiora: minha mãe. Ela... Bem... Ela se esforça muito pra cuidar de mim, da casa e de todo o resto. Muitas vezes ela consegue, mas, já não foram poucas as noites em que a escutei soluçando no quarto de baixo. Pra dizer a verdade, tenho muito orgulho dela por não ter perdido a garra e por ter continuado forte depois da separação ter ocorrido. Já faz alguns meses que ela e meu pai não estão juntos e, essa história anda me levando a crer que preciso estar bem mais presente em sua vida. O problema reside justamente aí: eu nunca fui o cara mais prestativo e carinhoso no qual uma mulher como minha mãe, poderia depositar segurança...
- Oi, desculpa a demora... Estava me arrumando.
- Achei que você tivesse desistido do café da manhã. - Ela estava de costas pra mim, passando o café e, por isso, não pude identificar exatamente se estava brava por eu ter demorado - Ficou acordado até tarde da noite de novo por causa daqueles pesadelos não foi?
Cara, seriamente, minha mãe sabe me tirar da razão. Simplesmente odeio quando ela faz isso. Não gosto de falar nos meus pesadelos e mesmo assim, dona Simone faz questão de tocar no assunto.
- Você... Você sabe que pode me contar. Sabe que eu vou tentar entender. - Ela se virou e lançou um olhar que dizia expressamente que eu estava sendo convocado a falar alguma coisa que prestasse, mas pra variar, dei uma de criança de quatro anos. - Não sonhei com nada mãe. Tá tudo bem.
- Dá pra parar de mentir pra mim? Eu conheço você. Sei quando não está...
- Para mãe! A senhora não sabe de nada. Eu não tive pesadelo nenhum. Tá tudo bem, ok? Agora, por gentileza, me passa a xícara de café?
Ela se calou. Os seus 1,62 metros de altura ficavam ainda menores em situações assim. Os olhos se tornavam sombrios e já era um claro sinal de que por todo aquele resto de café da manhã, não trocaríamos mais palavra alguma. Repentinamente, olho pro meu pulso e os ponteiros do meu
relógio já configuram quinze pras sete. - Estou muito encrencado. - penso comigo mesmo. Apesar de ser muito carinhosa, eu sabia que minha mãe estava bem chateada. Nem era preciso ser um gênio pra ver isso: ela quase não abriu a boca pra se despedir de mim, o que definitivamente não era algo comum. Contudo, o tempo e o meu orgulho me obrigaram a fechar a porta e deixar à senhora Guimarães, sozinha e indignada com seu filho incrível, idiota e muito, mas muito, atrasado....
Xaxim é uma cidadezinha do sudeste brasileiro. Moro aqui
desde que me entendo como gente e, até onde me lembro, esse era o ano mais chuvoso dentre todos os quais vivi. Isso determinantemente contrariava a ordem lógica das coisas, pois, o resto de todo o país estava tendo problemas com o clima seco. Contudo, para mim isso ainda sim era uma maravilha. Amo frio e chuva e, por mais que me parecesse estranho o fato de o clima da minha cidade estar tão diferente do restante do país, eu estava gostando.
Da minha casa até a escola eram mais ou menos uns vinte
minutos de caminhada. Meu plano seria reduzir esse tempo pela metade, pois, do contrário, alguém ficaria fora da escola e ainda por cima tomaria um zero por não ter entregado a dissertação de História, que por sinal, já havia sido exigida pelo querido Joseph há umas duas semanas.
- Se o porteiro vier com papo pra cima de mim de novo como da última vez, simplesmente por que eu cheguei cinco minutos atrasado, eu juro que vou... - Um calafrio não me deixou completar a frase. Quando olhei para o céu, vi que ele havia se escurecido completamente. Até as gotas de chuva não estavam caindo como deveriam. Pelo contrario: estavam se fragmentando, como se a água estivesse dentro da própria água, flutuando lenta, do mesmo jeito como quando suas partículas escorregam no peitoral de uma janela, só que aqui, acontecia de uma forma totalmente singular.
- Mas que... - não pude terminar. As palavras ficaram deformadas e começaram a desaparecer. Foi então que percebi o que estava acontecendo ao meu redor: o tempo tinha parado.
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Tempus - A Criação
General FictionMiguel é um jovem de 18 anos que subitamente descobre inúmeros segredos a respeito do passado da humanidade e dos primórdios do mundo e do universo, que por sua vez, o fazem repensar diversos fatores relacionados ao início de tudo: até que ponto o q...