Vejo uma mulher caindo do céu e ouço seu grito agoniante. Já assisti a esse pesadelo algumas vezes. O relógio acusa 02h57min/ am. Bate um forte vento, que descobriu metade do meu corpo enquanto dormia, a janela está aberta e as cortinas obedecem à brisa fria, quase congelante. Sento na beira da cama e meus pés ainda não tocam o chão, porém um pouco mais sinto um leve choque do solo rígido. Encontrando o equilíbrio, corro e tranco as janelas perturbantes, nunca se sabe quando o perigo lhe fará uma visita. Fecho as cortinas e o meu quarto escurece ainda mais. Parece que o frio ficou e agora se ouve as janelas pedindo outra chance. Deitei outra vez.
03h42 min/am. O sono não voltou. Corpo pesado. Persisto.
– Cansei! - Com pouca voz, disse a mim mesmo.
Em um longo bocejo, novamente me levanto. Me inclino e com água nas mãos lavo meu rosto, em seguida, olho os meus olhos avermelhados no espelho, a pele incolor e delicadamente amortecida. Um apático me encarando. O que está olhando? Pensei.
Na verdade, depois de tudo que aconteceu já não sinto muitas coisas.Com duas meias em cada pé, mais por velho hábito, sento-me na poltrona mais aconchegante e mais próxima. Não diria que é uma sala de visitas, se parece mais com uma bagunça organizada de um escritório. Na prateleira, se apertam vários livros de todos os possíveis gêneros, contudo os romances se destacam em quantidade. Não é meu preferido, na verdade agora nem suporto mais, mas, Samantha é como uma escrava. Fascinada. Deve ser a causa de ser tão, tão, tão amorosa.
Lembro-me de quando nos conhecemos. Eu estava com dezenove anos. Um dia bastante chuvoso com fortes relâmpagos e trovões que como uma máquina fotográfica queriam registrar aquele momento. No vendaval, eu pude vê-la pela primeira vez. Com um vestido preto escorrido, corria o mais rápido possível desviando-se das poças, e nas pontas dos pés com cuidado para não escorregar. Doce! Muito delicada e sensível. Antes que ela encontrasse uma cobertura eu a surpreendi com um guarda-chuva branco, sobre a cabeça. Olhou para cima e antes mesmo que olhasse meu rosto ela agradeceu de forma educada, pois um tanto fria.
– Obrigado. Isso já não é necessário. - Dizia isto pois já estava encharcada, e seguiu seu caminho. Calei-me e a persegui com o guarda-chuva ainda sobre sua cabeça.
– Moço, já agradeci. Não é necessário! - Repetiu e desta vez olhou em meus olhos.
– Então talvez visto que a chuva já lhe alcançou, não precisa mais correr, não acha?
– Só estou à procura de um abrigo. - Disse áspera.
Insisti e lhe constrangi: – Já encontrou!
Percebi, escondido um sorriso frágil. Sorte seria se chovesse para sempre. Assim, ficamos debaixo do mesmo guarda-chuva por apenas vinte e dois minutos e meio. A chuva parou e ela correu!
Por alguns, dias eu passei à procura daquela moça de cabelos longos e pretos, e a pele bem clara. Simples. Magnífica. Estranhamente cativante. Desisti! Decidi não voltar mais. Será que Sam fugia de mim ou apenas essas ruas e praças não faziam parte de sua rota diária? Não sei. Só decidi esquecer tal encanto.
Chego em casa e, como um vício, pego uma xícara de café, forte, amargo e altamente quente, afinal estávamos em um inverno severo. Subo as escadas até a melhor parte do meu dia. No sótão, com certeza muito peculiar da minha identidade, uma sala de artesanato e pintura. Na parede deixei uma pintura mal acabada de uma paisagem, com uma árvore em um penhasco, no galho mais alto um balanço com cordas desfiadas, vegetação pálida, alguns urubus famintos e o pôr do sol para trazer luz a uma paisagem falida que atravessava uma roda gigante. Com as manchas de tintas por toda parte, os quadros e pincéis espalhados, materiais minuciosos e ferramentas de artesanato no chão, nas mesas e prateleiras, com toda certeza me identifico e sei que esse é o meu lugar.
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Kingdom Park (História Completa)
Short StoryEla veio em um dia de chuva. Em busca de um coração ou mesmo de uma vida. Quando os sentidos falham, a jornada em busca de si mesmo percorre os caminhos longos, estranhos, bizarros de sentir e não sentir. Viver ou morrer - morrer ou viver. À procura...