Essa poltrona tem um cheiro de mofo de café. Como sei disso? Derrubei café uma vez e Sam ficou furiosa comigo. Não fiz nada... Preferi assim. Sinto falta! Falta de farejar. Falta de salivar quando sentia o cheirinho de torta de ricota com frango e requeijão, ou brócolis com molho branco e bacon... Culinária "La Chefe Samantha Kee". Sim. O sabor era divino! Paladar? Visão? Olfato? Tato? Audição? Não sei. Eu não imaginei que seria assim. Pensei que a partir daquele dia minhas pálpebras ficariam coladas para sempre, pela primeira vez eu colocaria um paletó metido a chique - odeio roupas sociais -, iria morar dentro de uma caixa do tamanho do meu manequim e cantariam hinos fúnebres com misto de lágrimas e flores. Engraçado... Em vez de descansar em paz, simplesmente acordei, mas agora completamente diferente. Sam não me ouve mais, não me vê, não me sente... Aos poucos os meus sentidos se distanciam... Minha família, meus amigos, minha vida estão desaparecendo. Ainda vejo alguns flashes. Flashes? Para que? O que posso fazer com isso? Nada.
– Ei Viktor. Nada de surpresas esta noite. - Disse o Malabarista, com traje a rigor bordô escuro. Alto e magro. Com os cabelos brancos penteados para trás como um empresário riquinho, mas sem a maleta preta e sem dinheiro. Às vezes com uma cartola de veludo amarelo-mostarda. Alguém tira essa coisa da cabeça dele! Confesso que é bem presente e bonito, embora seja bem esquisito.
– Não sei do que está falando. - Fiz-me desentendido.
– Sem disfarces, desmaios ou fugas. - Deu como se fosse uma ordem, retirando a cartola.
– Não me importo. Vai tirar um coelho da cartola? - Larguei as palavras e tentei mudar de assunto de forma agressiva.
– Você precisa aceitar o que aconteceu, Viktor. Não! Eu não sou um mágico ou algo do tipo...
– Faz uma mágica pra mim? - Provoquei.
– Viktor...
– Tranque as portas e sele as janelas, para que eles não entrem. Desse jantar eu não participo.
– Desculpe Viktor! Você não tem escolha. Todos vamos na reunião do porão e entregaremos a caixa.
Essa já era a terceira reunião. Três homens de máscaras brancas são os responsáveis. Fazem de tudo para apunhalar meu coração. Eles querem a caixa branca e prata de pedras brilhantes. Por favor, não deixem que executem essa crueldade. Serei exilado... Para um céu? Um inferno? limbo? Não faço idéia. Só deixe-me ficar. Ainda amo minha esposa e filho. Eu amo! Está bom assim. A cada flashe eu sobrevivo outra vez por mais alguns segundos... É pouco, mas é meu!
A caixa eu escondi. E isso vai ficar assim! Essa é a única forma de eu existir... Mesmo sem visão, tato, audição, paladar e olfato para o mundo real, pois os sentidos estão em perfeito estado para o mundo dos mortos... Agora faço parte do mundo dos mortos...
Paralelo.
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Kingdom Park (História Completa)
Short StoryEla veio em um dia de chuva. Em busca de um coração ou mesmo de uma vida. Quando os sentidos falham, a jornada em busca de si mesmo percorre os caminhos longos, estranhos, bizarros de sentir e não sentir. Viver ou morrer - morrer ou viver. À procura...