- Inspire! Quando eu contar até três, você solta o ar bem devagar e aperta o gatilho apenas com a ponta do dedo. 1, 2, 3! - Ensinou como um bom soldado.
Pow!
- Você não aprende, não é?! Você é igual sua mãe, uma decepção para mim, não serve para nada. - Repreendeu-me quando não acertei no alvo, que me faria ganhar algum brinquedo. - Você é um fracassado!
Acho que algumas crianças não querem virar um soldado. Mas, entendi a mensagem a respeito do fracasso. Caminhamos pelos corredores de barracas e brinquedos gigantes da alta temporada do famoso parque Kingdom. Meu pai logo me deixou em qualquer lugar e foi conversar com um sujeito mal-encarado que usava um macacão sujo que estava escrito o nome do parque. Esse traje maltrapilho era o uniforme do pessoal da manutenção. Sinceramente, andar sem meu pai era um alívio. Para uma criança, um parque pode significar diversão e terror. E não estou falando isso só por causa da "Hell's Mansion" que era um brinquedo tradicional com um trilho escuro com alguns relâmpagos de zumbis, fantasmas e caveiras. Digamos que existem outras coisas que nos assustam, e eu acabei as conhecendo de uma forma um tanto cruel. Quando eu fiz oito anos, minha mãe conseguiu um emprego na sorveteria do parque. É por esse motivo que toda vez que não conseguia algo eles resolviam com uma taça de sorvete de morango com menta. O lado bom de ser o filho de uma funcionária é que tinha um passe livre para os brinquedos, entretanto, nas barracas para ganhar os prêmios, eu tinha que pagar e disputar como qualquer criança. Me admirava com os talentos de um homem, que manipulava objetos com destreza. Ele transferia sua cartola para minha cabeça e passeava pelo Kingdom me equilibrando em seus ombros e jogando cinco "pinos de boliche" para cima. Geralmente esse tipo de artista não faz parte da equipe dos parques e sim dos circos, mas a verdade é que Kingdom fazia de tudo para entreter o público, visto que existem parques como Disneyland Park ou Beto Carreiro World. Meu pai, me levava todos os finais de semana para aquele lugar mágico. Naqueles dias eu não imaginava que Kingdom me acolheria e me ensinaria a sobreviver.
Na parte infantil, no final da tarde começava o espetáculo de teatro de vinte minutos com intervalos de dez, que se repetiam por umas quatro vezes em dias de pouco movimento. Quando Kingdom lotava, era no mínimo doze apresentações e sem revezamentos de atores. Eu sei disso, por que ao final de cada drama eu tinha acesso aos camarins, e foi assim que eu conheci o senhor Antony. Ele era um ator de setenta e dois anos e ainda sim, parecia muito jovem. Já não tinha muito cabelo e usava umas roupas com cheiro de naftalina, mas sem dúvida, era o homem mais sábio daquele parque. Além disso, era um ótimo contador de histórias. Na peça oficial, ele interpretava um rei, e nos contos que eram só para mim, ele me deixava escolher seu personagem. O famoso ator me deu um caderno de folhas limpas, um tipo de diário para desenhos, e disse que eu deveria criar minhas próprias histórias sem limites imaginários. Nessa oportunidade, comecei minha jornada nos rabiscos. Podia passear sozinho e explorar o gigantesco Kingdom. Com exceção da Hell's Mansion e os brinquedos muito radicais, por que eu tinha medo e a minha idade não permitia. Na frente dessa mansão do inferno, existia uma tenda formosa e cheia de pedras penduradas enfileiradas do topo ao chão. Alguns sinos dos ventos, bambus e penas, um cheiro muito doce, as vezes até uma fumacinha, e algumas coisas desconhecidas para o mundo infantil, que até hoje não sei para que servem. Em um cartaz maçante tinha uma mulher que escondia seus cabelos em panos e estava escrito "Madame Cassandra... Esqueça o passado, resolva o presente e descubra o futuro." Achei engraçado, como alguém poderia saber sobre as coisas que não aconteceram ainda?! Espiei por uma fresta que descobri enquanto cercava a tenda. Vi alguns objetos estranhos e o cheiro era ainda mais intenso. Tinha duas cadeiras vazias e um pássaro que um tempo depois eu soube que era um corvo.
- Entre garoto! - Disse uma voz do além. - Entre!
Esperei em silêncio, sem mover um músculo, quando no buraco em que eu olhava apareceu um rosto.
- Aaaaa!!! - Pulei para trás, num grito, do qual depois fiquei com vergonha.
A senhorita riu de mim e estendeu a mão em sinal de ajuda. Vi nos seus punhos muitas pulseiras cheias de símbolos e nas partes aparentes do seu corpo, muitos desenhos. Fiquei curioso. Era diferente ver que uma pessoa não desenhava no papel.
- Como é o seu nome? - Perguntou-me, forçando a sentar na cadeira perto do corvo.
- Vik... Viktor. - Respondi com dificuldade e ela sorriu.
- Não fique com medo! Eu já vi você correndo por aqui. Finalmente veio me visitar. Com certeza você é filho de algum funcionário. Não se preocupe, menino. Eu sei que essa tenda lhe arrepia a espinha, mas acredite, aqui é um bom lugar para se esconder. Deixe-me ver sua mão!
Cassandra era obscura, vidente e cigana, mas como ela mesmo diria: "Possui um espírito de protetora e uma alma de águia".
- Huum... seu pai é um homem cruel e você é um artista! Cabelos longos de uma jovem. - Com os olhos fechados franziu o cenho como se tivesse com dor. - Uma sala pequena com um portal de aço... e... e... - No crocitar do corvo junto com a trilha de um temporal, a madame se livra muito rápido sem terminar a sessão. Um pouco distraída, com as mãos inseguras pegou uma xícara de chá de camomila e maracujá e me serviu. Em seguida, se ajoelhou em minha frente com muito amor, e eu percebi que seus olhos estavam carregando um fardo. - Escute Vik, você é um bom rapaz! Em sua aura há ternura, e como um guerreiro terá que enfrentar veredas tortuosas.
As luzes do parque já estavam se apagando e não existiam mais filas para os brinquedos. Os portões de castelo de Kingdom Park já estavam fechados. Com certeza, eu perdi a noção do tempo e não faço ideia de como isso aconteceu. O temporal parecia piorar e o vento fazia os grandes brinquedos gemerem. Percebi que era hora de ir, quando ouvi um grito de uma mulher como se fosse um alarme de despertar. Corremos para fora da tenda e não vimos nenhuma alma viva, ou morta.
- Acho melhor você esperar aqui, Vik. - Disse a madame, que parecia saber de um futuro ruim.
Resolvi obedecer a ordem, mas neste instante mais um grito ecoou. Agora, Cassandra pegou um guarda-chuva branco e sabia exatamente onde estava o perigo. Esqueceu que eu era uma criança, e andou apressada para o sinal. Eu a segui na chuva e me deparei com uma mulher nas alturas da roda gigante. Eu era inocente, mas podia sentir que aquilo não parecia brincadeira. Em um relâmpago, que pareceu ter durado uns dois segundos a mulher pulou, e de surpresa o homem malabarista me puxou de forma muito agressiva para tapar os meus olhos e me virar de costas para o corpo voador. Mesmo assim, eu a reconheci... me sacudi com força e corri até a minha mãe. Eu não consegui ver seu rosto, pois já não existia uma parte do seu corpo no lugar. Tudo o que vi, foi o sangue se espalhando depressa como uma tinta vermelha e grossa. Eu abracei o que parecia uma boneca sem face. O homem mais uma vez me puxou sem dó e tirou os meus pés do chão para que eu não pudesse correr. A madame estava em choque e apenas chorava. O senhor Antony, correu para pedir ajuda quando o brinquedo começou a girar. Logo, os banquinhos do brinquedo romântico estavam funcionando, a comando daquele homem de macacão que estava na cabine, onde se controla o brinquedo. Mas, não era esse homem que me chamou atenção. Do topo, desceu uma criatura... Eu vi o rosto do meu pai pela última vez! Ele estava armado e saiu do brinquedo como um psicopata maníaco.
- Vik. Menino imprestável! Eu disse que sua mãe não era uma boa mulher. Aceite que ela nunca foi uma boa mãe, também. Agora, ela ficará em paz e eu vou seguir meu caminho. Não seja covarde. Venha aqui se despedir do seu pai. - Gritou para qualquer lugar, pois não sabia onde o homem havia me escondido.
Mesmo a distância, eu pude receber sua última mensagem. Nunca mais ouvi falar do meu pai.
Virei um menino mudo. E até os dezoito anos de idade morei em Kingdom. O malabarista, a vidente e o rei se tornaram minha família.
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Kingdom Park (História Completa)
Short StoryEla veio em um dia de chuva. Em busca de um coração ou mesmo de uma vida. Quando os sentidos falham, a jornada em busca de si mesmo percorre os caminhos longos, estranhos, bizarros de sentir e não sentir. Viver ou morrer - morrer ou viver. À procura...