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O homem de fato caminha às cegas pelas ruas da cidade, em busca de um sítio que lhe ofereça a segurança e a privacidade necessárias para poder abrir a caixa. Não consegue recordar, nem tenta imaginar o que estará lá dentro, porém o seu instinto alerta-o para a necessidade de manter aquele objecto afastado de olhares alheios. De vez em quando, pára a meio passo e olha para trás. Ninguém o segue, mas ele sente-se observado; sente-se sempre observado, mesmo quando está sozinho.

Torna a pensar na noite anterior. A noite que parece mais distante do que de facto terá sido. Como é que a caixa lhe tinha ido parar às mãos, é uma questão de somenos importância. Mas não o local onde essa descoberta, ou oferta, ou troca, acontecera. Esse local, à partida, será seguro e privado. Pelo menos quer acreditar que sim. Mas onde será? Lembra-se de uma rua estreita, flanqueada por prédios altos — uma descrição que, se tomada à letra, levá-lo-á a milhares de sítios naquela cidade; e é provável que nenhum deles seja aquele que ele procura. Precisa de mais pontos de referência.

Resolve parar e procurar um lugar onde se sentar. À falta de bancos, senta-se num lance de escadas. Um eléctrico sobe na sua direcção. O local é-lhe familiar. Se ao menos se lembrasse do nome dos sítios, talvez fosse mais fácil descobrir para onde tem de ir.

O eléctrico pára. Os passageiros saem e passam por ele como se ele não estivesse lá.

Às vezes ele próprio acha que não está.

As portas da carruagem ficam abertas, aguardando novos ocupantes, mas não está ali mais ninguém. Ele sente vontade de ir lá, mas não vai. Mais uma vez é assaltado pela sensação de já ter vivido uma experiência sem nunca o ter feito. Ouve vozes. Pessoas que se aproximam. Assim como os outros não o vêem, parece que ele às vezes também não vê os outros. Entram no eléctrico. O eléctrico anuncia a partida com uma campainha e começa a descer.

Ele fecha os olhos e imagina-se dentro daquela caixa de madeira e aço, com rumo certo e objectivo claro. Sabe que o seu trajecto não é uma simples linha recta de A a B (seria bom que fosse, mas não é); há muitas paragens pelo meio e ele tem de parar em todas. Imagina-se num banco de madeira, imagina o trepidar da carruagem, o som das rodas deslizando contra os carris de metal, o ranger agudo; imagina os solavancos, aproveitados para levar a mão ao bolso alheio, imagina o ar assobiando pelas janelas entreabertas, imagina-se a tirar a caixa do bolso, os dedos tocando o símbolo gravado na tampa sem causar qualquer efeito, imagina-se a levantar a tampa da caixa, os irritantes gritos de pânico dos passageiros, os incomodativos salpicos no rosto, o nojento toque daqueles que ousam tocar-lhe, suplicando-lhe por—

Abre os olhos de repente, ciente de que não precisa de imaginar para saber que está dentro do eléctrico. Apenas e só ele. O que aconteceu aos outros ocupantes, não sabe, não quer saber. A caixa de madeira está na sua mão: aberta. Dentro do seu interior, forrado a veludo negro, está um amontoado de fios de lã vermelha. Tanta coisa por aquilo? Agarra num punhado de fios e é colhido por uma vaga de memórias que não são suas, mas ao mesmo tempo são. Vê rostos que não reconhece, locais, momentos. Tudo lhe é estranho, tudo lhe é familiar. Com cuidado, torna a repor os fios na caixa, fecha-a e as memórias acalmam-se.

Ao seu lado, alguém tosse. O eléctrico está prestes a partir para mais uma viagem e ele de novo prestes a imaginar-se lá. Só que não é outra vez. Esse momento não acontecera mesmo. Tal como as memórias que o assaltam com frequência. Boa parte delas nunca acontecera. Ele apenas se lembra delas como se tivessem de facto acontecido. No entanto... a caixa de madeira continua por abrir, mas o seu conteúdo já não é segredo para ele.

Não mais preocupado com privacidade, tira a caixa do bolso e abre-a. Uma brisa ligeira sopra um dos fiapos de lã para longe. Ele fecha a caixa depressa antes que mais fiapos sejam levados. Não sabe o que são, mas depois do que acontecera, não quer correr o risco de perder algo irrecuperável. Aquilo que não acontecera ensinara-lhe uma preciosa lição. Enche o peito de ar, olha em volta e vê um edifício antigo, imponente, de portas abertas. Sente que este o convida a entrar, e espera que o vento não sopre tanto lá dentro.

INTERSECÇÕES - Fragmentos 0.7: O HOMEM DE FATOOnde histórias criam vida. Descubra agora