Segundo as indicações dadas por um senhor à saída do edifício da biblioteca, a Livraria Pascoal não fica muito longe do sítio onde ele está. Pode ser mera coincidência, ou pode ser o seu subconsciente que o conduzira a um sítio onde havia alguém capaz de lhe indicar o caminho a seguir. Qual das duas é, não tem a menor importância, desde que esteja a seguir o caminho certo.
A ida à casa de banho deixara-o aliviado, porém o seu estômago reclama agora por comida. A exigência acentua-se a cada passo que dá com o cheiro de bolos e carne e pão a violarem-lhe os sentidos.
Continua o seu caminho, bem consciente de que não é a sua determinação que o impede de parar para comer — é apenas a falta de dinheiro. Lembra-se de poucas coisas e, dessas poucas coisas, há algumas que não parecem ser lembranças suas. Ainda assim, conhece o suficiente do mundo para saber como é que este funciona. O seu corpo precisa de sustento, mas esse sustento não pode ser obtido de qualquer forma. Aprendera isso às suas próprias custas.
Pára à porta da livraria e olha para a montra. Uma senhora sai com um saco cheio de livros e olha de relance para ele. Ele retribui (não diz nada) e volta a olhar a para a montra. Entre os vários títulos em exposição, o seu olhar cai sobre um que parece ter tudo a ver consigo. Talvez o mesmo possa ser dito sobre qualquer outro dos títulos expostos, por qualquer um que olhe para aquela montra.
No seu caso, a obra em questão, de capa branca salpicada de traços vermelhos, como os pedaços de lã que ele transporta na caixa de madeira, e letras também vermelhas, tem por título OS FIOS DA MEMÓRIA e parece mesmo chamar por ele.
Convencido de que encontrara aquilo que procura, ele entra.
A senhora atrás do balcão parece ser a mesma da sua memória que não é sua. Olha de relance para a zona infantil, recordando fragmento de momentos, antes de se dirigir ao balcão.
«Boa tarde», cumprimenta a funcionária. (Irene, indica a placa na camisola.) «Em que posso ajudar?»
Ele aclara a garganta antes de falar porque está pouco habituado a usar a voz. «Livro na montra. Fios.. memória» Lembra-se da mãe da sua memória a admoestá-lo e acrescenta: «Boa tarde. Por favor.»
A senhora, Irene, responde um certo embaraço. «Eu peço desculpa, mas esse livro já não está disponível.»
«Mas está na montra.»
«O que está na montra é uma réplica. Quer ver?» Sem esperar que ele responda, ela vira-se de costas, tira uma chave do bolso, solta a tranca que prende as portas de vidro da montra e retira o livro. «Veja.»
Ele aceita o livro, folheia-o e constata que não passa de páginas em branco.
«Isto...» Nem sabe o que quer dizer.
«Nós fazemos isso para colocar os livros em exposição. Usamos réplicas para evitar que o sol ou a humidade danifique as capas.»
O significado das palavras dela não tem qualquer sentido para ele.
«Não tem mais?»
Ela abana a cabeça. «Acabei de vender o último. Ia agora mesmo tirá-lo da montra quando o senhor entrou.» Sorri.
Ele não tem razões para fazer o mesmo. Aquele livro é a sua última esperança. Única por não conhecer outra — é possível que não seja a última, mas como pode ele saber?
«Eu preciso do livro.»
«Terá de procurar noutra loja. Aquele era o único exemplar que tínhamos. Temos outras obras da autora, se estiver interessado.»
Ele recusa a oferta. Nenhum outro livro lhe interessa além daquele. O seu peito contrai-se, mas não são os pulmões a causar esse aperto, é o desespero de estar de novo perdido. A contracção aumenta a um ponto em que parece que o seu peito vai explodir para dentro. Só que não é isso que acontece. A pressão continua a aumentar, levando-o a fechar os olhos e a tombar inconsciente em cima do balcão.
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INTERSECÇÕES - Fragmentos 0.7: O HOMEM DE FATO
FantasíaQuando não sabemos quem somos ou de onde vimos, até onde estamos dispostos a ir para encontrar essas respostas? E quando há quem as tenha e recusa-se a entregá-las, haverá limites a respeitar? Sem nome e sem passado, o Homem de Fato é um errante que...