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As ruas estão sempre a mudar. As horas que faltam para o dia terminar demoram a passar mais que o habitual. Apesar de todos os dias parecerem lentos a passar para quem (como ele) tem fome, aquele dia em particular — com tudo o que aconteceu, não aconteceu e poderia ter acontecido — parece determinado a não avançar.

Durante o tempo que decorre entre a saída da livraria e a hora da sua muitas vezes única refeição diária são vários os momentos em que se sente tentado a puxar do livro que traz no bolso e descobrir que segredos escondem as suas páginas. Resiste à tentação por nenhuma razão em especial.

O seu olhar cruza-se com o de uma jovem mulher, acompanhada do filho. Há um reconhecimento no seu olhar e ele sente-se tentado a ir ter com eles. Entretanto, aparece o marido e esse impulso não desaparece, mas é reconsiderado.

Está na Praça D. Afonso VII quando isso acontece. A família segue no mesmo sentido que ele, em direcção à baixa, mas não será certamente pelas mesmas razões.

Com algumas dezenas de metros de intervalo, não percebe se está a percorrer o seu caminho de sempre ou a seguir aquela família. Por enquanto, os seus caminhos coincidem, o que torna essa indagação difícil de responder. O seu olhar foge para as três pessoas que o precedem, por muito que ele tente manter os olhos no passeio, ou nas montras das lojas, ou em outros transeuntes. Observa-os com aquela estranha sensação de familiaridade impessoal que tanto o apoquenta. E sem dar por isso, está a acelerar o passo, a diminuir a distância.

A poucos metros deles, o homem interrompe o passo, dá meia volta, avança contra ele e encosta-o à parede. Ele não reage.

«O que é que queres, hã?», pergunta o homem.

A mulher aproxima-se; a criança escondida atrás dela ousa espreitar para ele. Sente-se reconhecido, mas não reconhece.

«Fernando, pára! O que estás a fazer?»

«Este tipo anda-nos a seguir desde o Rossio.» Agarra-o pelos colarinhos. «Deves pensar que não te topei!»

«Fernando, deixa-o ir. Ele não fez mal nenhum.»

«Não fez porque eu apanhei-o a tempo, não foi?»

Ele continua sem responder. Farto disso, o homem, Fernando, esbofeteia-o.

«Isso foi pra quê?», pergunta ela.

«Só um aviso.»

Uma onda de fúria ergue-se dentro dele, ameaçando destruir tudo à sua passagem. O seu olhar volta a cruzar-se com o daquela criança e sente que esta lhe pede para não fazer o mesmo com o seu pai. Ele estremece de medo e deixa que a onda caia sem causar danos.

«Ai de ti que te volte a pôr a vista em cima, ouviste bem? Ai de ti!»

Ele acena e deixa-os ir, com a certeza de que os seus caminhos se tornarão a cruzar por mais esforços que façam para que isso não aconteça. Espera vários minutos antes de retomar o caminho. Não o faz para reduzir as probabilidades de se cruzar com eles, fá-lo para processar aquilo que sentiu ao olhar nos olhos daquela criança. Aquela criança de quatro que lhe pareceu tão familiar como ele se parece a ele próprio. E ao mesmo tempo tão estranha. Existe uma ligação Disso, tem certeza. Mas como entendê-la?

O sol já vai caindo e com ele vêm os tons quentes do dia que termina. Um dia em muito igual aos demais, mas ao mesmo tempo tão diferente. Na verdade, fora alguns detalhes em comum, aquele tinha sido um dia singular. E assim permaneceria, a não ser que a memória o venha a traí-lo no futuro.

Enquanto atravessa o Terreiro do Paço, avista a família lá ao fundo — isolados no seu olhar como se fossem os únicos no mundo. Vão a caminho da estação dos barcos, mas aquela estação tem dois destinos. Se os seguir até ao ponto de embarque, ficará a saber para onde eles vão. Mas e depois? Deverá arriscar ir atrás deles? Não teme pela sua integridade física (não quando isso pode significar algumas respostas), mas teme que o seu lado adormecido tome conta das suas acções e faça àquela família o mesmo que foi feito (que ele fez) à senhora da livraria. Atrasa o passo um pouco, esforçando-se por não os perder de vista.

A família entra na estação.

Os senhores da entrega de alimentos já lá estão. Vieram mais cedo, mas apesar disso já há uma fila formada. O seu estômago implora-lhe que fique ali, mas ele precisa saber para onde eles vão. Não pensa em segui-los através do rio (mas também não pensava em segui-los dentro da estação e ei-lo ali).

Um barco anuncia a sua partida. Os placards electrónicos informam que vai para o Barreiro. Quando chega à zona de embarque, já não está lá ninguém. Segue então para a zona de embarque ao lado, onde uma escasssa meia dúzia aguarda o barco que as levará até ao Montijo dali por meia hora. Por exclusão de partes, conclui que a família seguiu para o Barreiro. Resta saber se será esse o seu destino final.

Sem mais razões para continuar ali, cede por fim às exigências do seu corpo e abandona a estação. A fila entretanto ganhou mais alguns elementos. Junta-se a eles e conta as cabeças, cruzando os dedos para não ficar sem a sua dose. Não sabe de onde vem essa mania de cruzar os dedos quando quer muito que o destino não lhe cuspa em cima. Sente que alguém lhe ensinou isso em tempos, mas sente também que esse tempo ainda está por acontecer.

Talvez uma boa malga de sopa quente o ajude a não pensar nisso.

INTERSECÇÕES - Fragmentos 0.7: O HOMEM DE FATOOnde histórias criam vida. Descubra agora