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Uma placa à entrada do edifício indica a presença de uma biblioteca pública no primeiro piso. Esperando encontrar uma casa de banho lá, ele entra e sobe as escadas. Na recepção da biblioteca não está ninguém. Ao invés de chamar ou de esperar por alguém, tem a sensação de já ter estado ali antes e torna a sair. Ao lado das escadas por onde subira, está um outro lance de escadas, mais curto, mais estreito. No topo, uma porta verde com uma placa WC. Sobe até lá, entra e tranca-se no único cubículo disponível.

O seu corpo não sente necessidade de alívio, todavia ele aproveita para expelir algumas impurezas. Não sabe quando é que voltará a ter oportunidade de o fazer. No fim, acaba por fazer mais do que estava à espera e fica contente por isso. O risco de ser interrompido por alguém ainda é real, mas o risco de ser interrompido por si mesmo já não é tão elevado. Assim espera.

Torna a tirar a caixa do bolso e ergue a tampa com cuidado. Resiste ao impulso de agarrar nos pedaços de lã à mão cheia; em vez disso, observa-os com atenção sem lhes tocar. No total conta nove.

É assim que nota as irregularidades nas extremidades. Se tivessem sido cortadas com um objecto cortante, tipo uma tesoura, as pontas estariam lisas; a presença de farripas denuncia que os pedaços tinham sido rasgados. De onde, não sabe; tal como não sabe o que é aquilo, além do que parece ser. Arrisca pegar num pedaço. Escolhe o que parece ser mais curto, na esperança de que isso atenue o dano.

Ao tocar no fio sente logo o mar de memórias desconhecidas a trazer mais um pedaço de recordação de um momento que não vivera. Desta vez, a vaga não o submerge e ele é capaz de observar o momento em detalhe.

Uma criança entra numa livraria, acompanhada da mãe. A mãe cumprimenta a senhora que está ao balcão. A senhora brinca com ele. Ele, tímido, esconde-se atrás da mãe. Não é a primeira vez que ali vão. Sente que tem boas memórias daquele lugar.

Os seus olhos de criança percorrem todo o espaço, incansáveis, atentos — e ele só espera que pousem em algo que lhe permita identificar o local. Que pena não poder controlar a perspectiva da lembrança da forma que mais lhe convém.

A mãe leva-o até uma estante com livros infantis e deixa que ele escolha aquele que mais lhe agrada. Ele tira vários livros da prateleira, alguns descarta de imediato, outros analisa com minúcia, folheia-os, devolve-os à mãe para ela os arrumar, tira mais uns tantos e repete o processo. No fim, a sua preferência recai num livro que tem na capa um pequeno ratito a brincar com um novelo de lã.

A mãe pergunta-lhe se é mesmo aquele que ele quer. Ele acena e entrega o livro à mãe e vão até ao balcão pagar.

Se antes os seus olhos de criança não paravam quietos em sítio nenhum, agora parecem colados ao livro. A mãe pede-lhe o livro, ele hesita, a mãe torna a pedir, explica que é só para a senhora fazer o pagamento, ele entrega o livro e olha para a senhora da loja. Atrás dela está uma placa, cujos caracteres o seu olhar de criança não consegue decifrar, mas que o seu eu adulto lê na perfeição: Livraria Pascoal.

Feita a descoberta, regressa de imediato ao momento presente, porém o seu retorno não é completo. Uma parte dele parece ainda presa naquele passado, do qual se lembra sem nunca o ter vivido. Espera um pouco em silêncio, esperando até se sentir tão completo quanto possível. Mas esse estado nunca é atingível. Nunca foi. Anima-se: pelo menos agora tem uma pista a seguir. É apenas um nome de um estabelecimento que pode até já não existir, mas é muito mais do que tinha antes.

Considera tirar outro pedaço de lã da caixa para ver que memória lhe traz. É possível que outros pedaços forneçam outras pistas. Cada coisa a seu tempo, decide. Repõe o pedaço que tirara, fecha a tampa e guarda a caixa no bolso. Primeiro irá ver até onde é que aquele pedaço de memória o leva, mais tarde se preocupará com o resto do puzzle.

INTERSECÇÕES - Fragmentos 0.7: O HOMEM DE FATOOnde histórias criam vida. Descubra agora