Quando acordei, estava em um quarto que eu não reconhecia, as paredes eram cinzas, o teto branco, a porta de aço e... se tem algo que me lembro é dos adesivos dessa porta...de flores desbotadas que indicava que aquele quarto pertencia a outra garota ou outras garotas, mas havia também um adesivo em cores vivas , um azul royal vibrante e preto. Minhas cores favoritas: azul e preto.
Eu fiquei um instante a observando antes de tentar me mover em direção a ela, para minha surpresa a borboleta saiu voando pelo quarto, como em uma suave dança. Eu quase podia ouvir a orquestra, era uma borboleta bailarina... seu palco era aquele confinador quarto e no seu "grand finale" ela rodopiou em despedida á sua plateia e voou pela pequena basculante que permitia entrada de ar .
Foi então que eu voltei a realidade. Eu estava em um lugar estranho sem saber o que fariam comigo. Comecei a me sentir sufocada, as paredes pareciam se aproximar cada vez mais umas das outras, me pressionando contra elas e eu não podia fugir, não conseguia, todo o meu corpo doía, estava imobilizada por gessos, só o que me restava era ficar ali, parada ...
Comecei então a perceber os detalhes daquele quarto, percebi que havia uma porta de mogno, haviam marcas de unhas e mordidas (?) por toda ela. Estava bem destruída: a ferrugem já estava tomando conta das dobradiças, havia também uma pequena cadeira onde estavam minhas roupas, quer dizer, supus que fossem minhas, não era as roupas que eu lembrava que estava usando, era uma espécie de uniforme, uma calça de moletom em roxo e camiseta combinando...tudo liso , sem graça,igualzinho como uniforme de presidiário. Era exatamente isso oque eu era naquele lugar: presidiária.
Notei: eu estava de pijamas, um pijama cor-de-rosa, exatamente igual ao uniforme , mas pijama.
Não havia mais nada, era uma quarto sem graça, sem vida, que roubava qualquer sinal de felicidade.
A porta de aço se abriu, uma mulher na casa dos 60 anos sorriu para mim. Ela carregava uma bandeja de comida e caminhou até mim, sentou-se ao meu lado onde havia uma cadeira vazia, colocou a bandeja sobre o colo e disse:
-- Que bom que acordou! Estava preocupada que aquele brutos tivessem matado você com aquele sedativo
Então começou a me alimentar. Ela era enfermeira encarregada de mim. Se chamava ...bom eu a chamava Senhora Garcia. Não sabia seu primeiro nome, mas ela vinha de hora em hora verificar meus sinais vitais, dar os remédios e trocar minha fralda, embora já fizesse quatro anos que eu não usava, eu estava tão ferida que não conseguia ir ao banheiro o que me restou as fraldas.
Pelo o que ela dizia, eu ficaria ali até me recuperar e depois até que senhora Dias retornasse de férias e junto do psiquiatra fizessem uma avaliação psicológica aprofundada em mim para decidir por mais quanto tempo eu ficaria ali .
A senhora Dias havia tirado férias por alto estresse , mas ninguém sabia exatamente o motivo. Dizem que ela alegava ter conhecido o anti-cristo e que ele era pior do que diziam e que se disfarçava-se em forma de fofura e inocência.
Não sei por quanto tempo fiquei presa naquele quarto, o tempo passava diferente naquele meu mundo quadrado de cimento, mas Senhora Garcia era amável, gentil ... ela me contava histórias e inventava brincadeiras para me fazer sorrir, eram meus momentos felizes, pois enquanto ela não estava era apenas torturante, nem ao menos havia brinquedos, televisão ou livros naquele quarto, não havia nada.
Ainda me lembro daquela primeira noite. Eu acordei e não pude ouvir muita coisa, apenas o som de grilos no lado de fora. Eu não sei bem que horas era apenas sei que estava escuro. Eu não sabia bem onde eu estava ou como havia parado ali, minhas lembranças eram confusas , via apenas borrões de cenas , tudo passava rápido diante de mim , eu nem conseguia distinguir bem pessoas e objetos , apenas lembrava de imagens aleatórias e distorcidas , nem ao menos sabia se as imagens estavam em algum tipo de ordem ou apenas aleatórias ou se eram parte da minha imaginação.
Eu me levantei da cama após ouvir uma doce melodia, se você já teve uma caixinha de música que tocava "Für Elise" sabe como essa música é hipnotizante - eu particularmente amava brincar de bailarina ouvindo ela e este é meu segredo, bom, nosso - eu não resisti ao som de Beethoven, eu praticamente rodopiava pelo quarto, era pura magia
Eu estava em transe, quando dei por mim já estava girando a maçaneta da porta e conseguindo sair, foi quando a vi novamente: a borboleta azul, ela aguardava por mim, estava me encarando como se...como se...estivesse falando comigo sem palavras, apenas com a alma.
Eu sorri, a reconheci como uma velha amiga, ela então voou pelos corredores escuros, não havia luzes acesas por todos os corredores - ou quase -por entre os corredores vazios que mais pareciam labirintos, descobri os segredos por trás das portas, observei os humanos que ninguém via, percebi o verdadeiro ser por trás das carnes.
Por trás de algumas portas havia luz e eu, sempre curiosa, resolvi espiar.
Na madrugada quando todos dormem e entre quatro paredes , as pessoas revelam seu verdadeiro eu , seu eu mais louco , vi coisas terríveis aquela noite , crianças sofrendo , gritando , tentando fugir... enquanto adultos ...bom...vi um homem olhando sonhador para a janela , pude o ver chorando , talvez de saudade , havia também uma mulher olhando-se no espelho esticando o rosto com as mãos , erguendo os seios e suavemente aplicando um creme hidratante pelo seu corpo , ela olhava para seu reflexo e o que ela via não a agradava , ela via uma pessoa feia embora ela tivesse um belo rosto e corpo em forma , seu cabelo era loiro e cacheado , as mãos pousavam sob o queixo angulado em formato de V e o robe branco de cetim contornavam seu corpo triangular ...entre muitas pessoas físicas , eu via apenas pobres almas atormentadas pelo maior mal da humanidade , os humanos .
E se ele precisasse trabalhar para sustentar a família? Não seria o dinheiro a culpa da saudade? e quem inventou o dinheiro? Humanos, pois sua cobiça era sem tamanho. E se a mulher não soubesse sobre o conceito de beleza? estaria ela ainda lutando contra seu corpo? Beleza...mais uma palavra de peso de importância para a sociedade que eu nunca entenderia. Beleza e dinheiro fazem parte de pilares de uma grande pirâmide social de sucesso que eu nunca entenderei
Fui acordada de meus pensamentos ao ouvir " Once Upon a Time in Paris" de "Erick Satie", foi quando percebi que a borboleta já estava bem adiante , precisei correr para alcançá-la e quando finalmente alcancei ... estávamos fora do prédio , mais especificamente em um parque de diversões , tudo parecia tão legal eu só queria correr e brincar
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Reflexo no Espelho
HorrorHoje você já parou para pensar nos males do mundo ?Desde o início dos tempos temos presenciado como seres humanos a mais diversas tragédias e buscando as mais variadas soluções para eles , doenças , catástrofes ambientais , demônios , pecados , mort...