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No meio de um monte de gente, vejo algo grande enrolado em panos brancos, preso em uma estaca de madeira. As pessoas olham, rezam e, algumas poucas, choram. Parece mais alguma coisa religiosa e, por isso, resolvo não perguntar sobre naquele momento.

Depois de uns minutos naquele clima, um homem de branco surge, carregando uma tocha acesa. Ele, como um pastor, orienta as pessoas a se afastarem e parece ter a confiança delas.

Ele chega perto da estaca e coloca o fogo ali, que foi se espalhando pelo pano branco. No momento que as chamas o tocam, ouço um grito agudo e agonizante. O que é isso? Algum animal sendo queimado vivo? A ideia me assusta. Olho em volta para ver a reação dos outros. Rostos apáticos, sem nenhuma emoção.

E continuam assim, até o fogo abaixar. Parecem mais admirados do que horrorizados.

O cheiro de queimado começa a ficar muito forte e, confusa pelo que acabou de acontecer, saio de perto e desço a ladeira. Pude ouvir os passos de Charles atrás de mim.

—Não quis te assustar! —Ele me acompanha até um banco e nos sentamos.

—O que foi isso?

—É estranho e eu duvido que você acredite, mas vou contar.

Ele espera uma resposta minha mas só continuo olhando para o céu, já escuro e com estrelas.

—Essa ilha, nós, somos bastante religiosos. E acreditamos em uma lenda antiga, sobre sereias.

Pensar em uma sereia é algo estranho, mas não discuto. A situação em si já é estranha demais.

—A lenda conta sobre uma menina que foi carregada pelo mar e transformada em sereia. E depois de 300 anos presa nesse corpo, foi acolhida em uma igreja e lá lhe foi dada a opção de morrer ou viver mais 300 anos, claro que escolheu terminar tudo naquele momento.

Ele para de falar por um instante e respira fundo.

—Ela virou uma santa. Santa Murgen, e foi exposta nos vitrais da igreja por um tempo. E depois tudo sobre ela desapareceu e poucos sabem como realmente foi a história, já que agora é abominada. Dizem que ela era um demônio disfarçado de mulher. Mas minha mãe diz que, se a lenda for real, a única coisa que ela fazia era vagar sozinha pelo mar e se esconder dos pescadores.

É muita informação pra mim. Tento processar tudo o mais rápido possível, mas parece tão confuso.

—Na exata hora que você foi achada no mar, uns pescadores encontraram uma sereia morta no píer. Isso que você acabou de ver foi uma tradição antiga, usada pra queimar essas criaturas e garantir que a alma nunca mais retorne para nossos oceanos.

Nossos? Sinto algo estranho quando ele fala essa palavra. O oceano é tão vasto para nos sentirmos donos dele.

Voltamos para a casa de Perol e encontramos a janta pronta. Subo rápido e tomo um banho quente, pra tirar o cheiro de queimado que provavelmente está impregnado na minha roupa. Coloco um vestido qualquer e abro a janela do quarto, colocando o rosto pra fora.

O mar.

Pela primeira vez, me sinto bem olhando as ondas e descubro algo que não havia notado antes: uma forte ligação com a água. Fecho os olhos e deixo todos os pensamentos bons invadirem a minha mente. Alguns segundos são suficientes para me deixarem em paz. Abro os olhos novamente quando escuto a voz de Perol, me chamando. Desço correndo e me sento na mesa de jantar.

—Eu espero que você goste, é o prato preferido da minha filha. Vocês são muito parecidas, já disse isso? Até o jeito de andar! Ah, ela vai gostar muito de você quando voltar.— ela diz, colocando os pratos de comida na mesa.

Nem pude responder. Lembro que essa seria a primeira refeição real que eu comeria desde que havia chegado na ilha. Como tudo, sem soltar mais palavras. Agradeço pela janta e volto ao meu quarto, colocando o pijama e deitando na cama.

Não durmo. E se dormi foram poucas horas. Fecho os olhos e acordo com a confusão dos meus pensamentos. E tudo que consigo olhar é a escuridão profunda do quarto.

Eu evidentemente não me sinto bem nesse lugar, mas me sinto muito grata por Perol e Charles, que me ajudaram tanto e eu não posso retribuir com nada.

Me sinto inútil diante de toda essa situação.

ALONEOnde histórias criam vida. Descubra agora