1.
Todas as paixões têm um tempo em que são meramente nefastas, em que aviltam suas vítimas com o
peso da estupidez; e um tempo posterior, muito posterior, em que se casam com o espírito, em que se
"espiritualizam". Outrora, em virtude da estupidez na paixão, combatia-se a própria paixão: conjurava-
se para a sua aniquilação. Todos os antigos monstros da moral são unânimes quanto a isso: "il faut tuer
les passions"6
. A formulação mais famosa desta sentença encontra-se no Novo Testamento, naquele
Sermão da Montanha, no qual, dito de passagem, as coisas não foram consideradas de modo algum
desde o alto. Aí mesmo, por exemplo, diz-se com respeito à sexualidade: "Se teu olho te escandaliza,
arranca-o fora". Por sorte nenhum cristão age segundo este preceito. Aniquilar os sofrimentos e os
desejos, apenas para evitar sua estupidez e as conseqüências desagradáveis de sua estupidez, se nos
apresenta hoje como sendo mesmo apenas uma forma aguda desta última. Não passamos a admirar mais
os dentistas que arrancam os nossos dentes, para que eles não doam mais... Por outro lado, é preciso
confessar com alguma eqüidade que, sobre o solo de crescimento do Cristianismo, o conceito de
"Espiritualização da Paixão" não podia ser concebido de forma alguma. Como é de fato reconhecido, a
igreja primitiva lutou contra os "Inteligentes" em favor dos "Pobres de Espírito": como seria possível
esperar dela uma guerra inteligente contra a paixão? - A igreja combate o sofrimento através da
extirpação em todos os sentidos: sua prática, seu "tratamento" é o da castração. Ela nunca pergunta:
"como se espiritualiza, se embeleza, se diviniza um desejo?" Em todos os tempos, ela pôs a ênfase da
disciplina na supressão (da sensibilidade, do orgulho, do desejo de domínio, de posse e de vingança). -
Mas atacar os sofrimentos na raiz é o mesmo que atacar a vida na raiz: a práxis da igreja é inimiga da
vida...
2.O mesmo remédio, a castração e a extirpação, é instintivamente escolhido no interior da luta contra o
desejo por aqueles que estão demasiado degenerados, demasiado enfraquecidos em suas vontades, para
poderem se impor uma medida nos desejos: por aquelas naturezas que têm necessidade de "La Trappe",
dito alegoricamente (e sem alegoria), de qualquer declaração definitiva de inimizade, de um abismo
entre elas e uma paixão. Os remédios radicais só são indispensáveis para os degenerados. A fraqueza
da vontade, falando mais determinadamente, a incapacidade de permanecer sem reação frente a um
estímulo, é mesmo apenas uma outra forma de degenerescência. - A inimizade radical, a inimizade de
morte frente à sensibilidade continua sendo um sintoma digno de reflexão. Com ela tem-se o direito de
fazer suposições sobre o estado conjunto de quem é desta forma tão excessivo. - Essa inimizade, esse
ódio, aliás, só alcança o seu ápice quando tais naturezas mesmas já não possuem mais firmeza suficiente
para seu tratamento radical, para a renúncia a seu "Diabo". Abrange-se com a vista toda a história dos
sacerdotes e dos filósofos, incluindo a dos artistas: não são os impotentes, nem tampouco os ascetas, que
lançam o que há de mais venenoso contra os sentidos, mas os ascetas impossíveis, aqueles que teriam
tido necessidade de ser ascetas...
3.
A espiritualização da sensibilidade chama-se amor: ela é um grande triunfo sobre o Cristianismo.
Um outro triunfo é a nossa espiritualização da inimizade. Ela consiste em se compreender
profundamente o valor que possui o fato de se ter inimigos. Em resumo: frente ao modo como se agia e
concluía outrora, se age e conclui agora inversamente. A igreja sempre quis, em todos os tempos, a
aniquilação de seus inimigos: nós, imoralistas e anticristãos, vemos nossa vantagem no fato de que a
igreja subsiste... No campo político, a inimizade também se tornou agora algo mais espiritualizado.
Muito mais prudente, muito mais meditativo, muito mais cuidadoso. Quase todos os partidos
compreendem que os interesses de sua autoconservação apontam para a necessidade dos partidos
opositores não perderem suas forças; o mesmo vale para o grande político. Uma nova criação
sobretudo, algo como um novo império, tem os inimigos como mais necessários do que os amigos:
somente na oposição ele se sente necessário, somente na oposição ele se torna necessário... Nós não nos
comportamos de modo diverso frente ao "inimigo interior": também aí espiritualizamos a inimizade,
também aí compreendemos seu valor. É preciso ser rico em oposições, e só pagando esse preço que se é
fecundo; só se permanece jovem sob a pressuposição de que a alma não se espreguiça, não anseia pela
paz... Nada nos parece mais estranho do que o que era desejável outrora, o que era desejável para o
cristão: a "paz da alma". Nada nos deixa menos invejosos do que a vaca moral e a felicidade balofa da
boa consciência. Renunciou-se à vida grandiosa quando se renunciou à guerra: Em muitos casos, por
sorte, a "paz da alma" é apenas um mal-entendido, - algo diverso que apenas não sabe se denominar de
um modo mais honroso. Sem rodeios e preconceitos, aqui temos alguns casos. A "paz da alma" pode
ser, por exemplo, a irradiação suave de uma animalidade rica no interior do campo moral (ou religioso).
Ou o começo da fadiga, a primeira sombra que a noite lança, qualquer tipo de noite. Ou um sinal de que
o ar está úmido, de que o vento sul se aproxima. Ou a gratidão inconsciente por uma digestão feliz (às
vezes chamada "amor aos homens"). Ou a aquietação do convalescente, para o qual todas as coisas
possuem um novo sabor, e que espera... Ou o estado que segue a um intenso apaziguamento de nossa
paixão dominante, o bem-estar de uma saciedade rara. Ou a senilidade de nossa vontade, de nossos
desejos, de nossos vícios. Ou a preguiça, convencida pela vaidade a adornar-se moralmente. Ou a
entrada em cena de uma certeza, mesmo de uma certeza terrível, depois da tensão e do martírio
produzidos pela incerteza. Ou a expressão da maturidade e do domínio em meio ao agir, criar, efetivar,
querer, o respirar tranqüilo, a "Liberdade da Vontade" alcançada... Crepúsculo dos Ídolos: quem sabe?
Talvez também apenas um tipo de "Paz da Alma"...
4.
- Dou formulação a um princípio. Toda e qualquer posição naturalista na moral, isto é, toda e
qualquer moral saudável, é dominada por um instinto de vida. - Um mandamento qualquer de vida é
preenchido por um cânone determinado de "tu deves" e "tu não deves"; um entrave e uma hostilidade
quaisquer são assim postos de lado no caminho da vida. A moral antinatural, ou seja, quase todas as
morais que foram até aqui ensinadas, honradas e pregadas, remete-se, de modo inverso, exatamente
contra os instintos vitais. Ela é uma condenação ora secreta, ora tonitruante e insolente destes instintos.No que ela diz "Deus observa os corações", ela diz Não aos desejos vitais mais baixos e mais elevados,
tomando Deus como Inimigo da Vida... O santo, junto ao qual Deus sente prazer, é um castrado ideal...
A vida chega ao fim, onde o "Reino de Deus" começa...
5.
Suposto que se compreendeu o caráter sacrílego de uma tal insurreição contra a vida, tal como ela se
tornou quase sacrossanta no interior da moral cristã, também se compreendeu com isso por sorte algo
diverso: o que há de inútil, aparente, absurdo, mentiroso em uma tal inssurreição. No entanto, uma
condenação da vida por parte do vivente permanece sendo em última instância apenas o sintoma de um
tipo determinado de vida: sem que com isso se pergunte se uma tal condenação tem ou não razão de ser.
Se precisaria ter uma posição fora da vida, e, por outro lado, conhecê-la tão bem quanto um, quanto
muitos, quanto todos que a viveram, para se ter antes de tudo o direito de tocar o problema do valor da
vida: razões suficientes para se compreender que esse problema é inacessível para nós. Quando falamos
de valores, falamos sob a inspiração, sob a ótica da vida: a vida mesma nos obriga a instaurar valores, a
vida mesma valora através de nós quando instauramos valores... Daí se segue que também aquela
contranatureza da moral, que toma Deus por conceito contrário e condenação da vida, é apenas um
juízo de valor da vida. - De que vida? De que tipo de vida? - Mas eu já dei a resposta: da vida
decadente, enfraquecida, cansada, condenada. A moral, tal como foi entendida até aqui - como por fim
foi ainda formulada por Schopenhauer, como "negação da vontade de vida" -, é o próprio instinto da
décadence que se transforma em imperativo. Ela diz: "Pereça!" ela é o juízo dos que foram
condenados...
6.
Consideremos ainda por fim que ingenuidade patética é em geral dizer que o "homem deveria ser de
tal ou de tal modo!" A efetividade nos mostra uma riqueza encantadora de tipos, a exuberância de um
jogo e de uma mudança de formas profusos. E um reles serviçal de moralista qualquer diz: "não! o
homem deveria ser diferente?"... Ele sabe até mesmo como ele deveria ser, este fanfarrão e este beato,
ele pinta um auto-retrato na parede e diz "ecce homo!"... Mas mesmo quando o moralista se volta
simplesmente para o indivíduo e lhe diz: "tu deverias ser de tal e de tal modo!", ele não deixa de se
tornar risível. O indivíduo, visto pela frente ou por detrás, é um pedaço de destino, uma lei a mais, uma
necessidade a mais para tudo o que advém e será. Dizer-lhe "transforma-te" significa exigir que tudo se
transforme, até mesmo ainda o que ficou para trás... E, realmente, houve moralistas conseqüentes; eles
queriam os homens diversos, mesmo virtuosos, eles os queriam à sua imagem, mesmo beatos: para tanto
eles negavam o mundo! Nenhuma pequena sandice! Nenhum tipo modesto de imodéstia!... A moral, à
medida que não condena a partir de pontos de vista, de considerações e intenções vitais, mas em si, é
um erro específico, pelo qual não se deve sentir nenhuma compaixão; a moral é uma idiossincrasia de
degenerados que provocou muitos e indizíveis danos!... Nós outros, nós imoralistas, ao contrário,
abrimos amplamente nosso coração para todo tipo de entendimento, compreensão e aprovação. Não
negamos facilmente, buscamos nossa honra no fato de sermos afirmativos. O olhar abriu-nos cada vez
mais para aquela economia que ainda precisa e sabe utilizar tudo isso que o desatino santificado dos
sacerdotes, a razão doentia nos sacerdotes, rejeita, para aquela economia na lei da vida, que por si
própria retira sua vantagem das espécies mais repugnantes de beatos, de sacerdotes, de virtuosos. - Que
vantagem? - Mas nós mesmos, nós imoralistas, somos aqui a resposta...
VOCÊ ESTÁ LENDO
Crepúsculo dos idolos
RandomCrepúsculo dos Ídolos, ou Como Filosofar com o Martelo, foi a penúltima obra do filósofo alemão Nietzsche, escrita e impressa em 1888, pouco antes de o filósofo perder a razão.