Meus impossíveis. - Seneca: ou o toureador da virtude. - Rousseau: ou o retorno à natureza em
impuris naturalibus. - Schiller: ou o trompetista moral de Säckingen. - Dante: ou as hienas que fazem
poesia nos túmulos. - Kant: ou a cant [hipocrisia] enquanto caráter inteligível. - Vitor Hugo: ou o farol
no mar do contra-senso. - Liszt: ou a escola da destreza segundo as mulheres. - George Sand: ou lactea
ubertas; em alemão: a vaca leiteira com um "belo estilo". - Michelet: ou o entusiasmo despido... -
Carlyle: ou o Pessimismo enquanto o almoço azedado. - John Stuart Mill: ou a clareza ofensiva. - os
irmãos de Goncourt: ou os dois Ajaxes em luta com Homero. A música de Offenbach. - Zola: ou "a
alegria de feder".
2.
Renan. - Teologia, ou a degradação da razão pelo "pecado original" (o cristianismo). O testemunho
de Renan que, logo ao arriscar uma vez um Sim ou Não de modo mais universal, erra o alvo com uma
regularidade penosa. Ele queria, por exemplo, ligar em uníssono la science e la noblesse12
: mas a ciência pertence à democracia, e isso é palpável. Ele deseja, com uma ambição nada desprezível,
apresentar um aristocratismo do espírito: no entanto, ele aconchega ao mesmo tempo sobre seus joelhos,
e não apenas sobre seus joelhos, a doutrina contrária: o evangelho dos humildes... De que serve toda
essa conversa sobre liberdade do espírito, toda modernidade, toda zombaria e toda a flexibilidade de
papaformigas, se em nossas entranhas continuarmos cristãos, católicos e até mesmo sacerdotes! Renan
possui toda sua inventividade, exatamente como um jesuíta e um confessor, na sedução; em sua
espiritualidade não falta o largo sorriso eclesiástico. - Como todo sacerdote, ele só se torna perigoso
quando ama. Ninguém se equipara a ele no modo de louvar, um modo de louvar que coloca a vida em
risco... Este espírito de Renan, um espírito que debilita os nervos, é mais uma fatalidade para a doente,
para a doente da vontade, para a pobre França. -
3.
Sainte-Beuve. - Nada do homem; pleno de uma raiva contra todo e qualquer espírito varonil.
Errando de um lado para outro, fino, curioso, entediado, em posição de escuta. No fundo uma
personalidade feminina, com vinganças de mulher e uma sensualidade de mulher. Enquanto psicólogo,
ele é um gênio da malediscência, inesgotavelmente rico em meios para tanto; ninguém entende melhor o
que significa misturar veneno com um elogio. Plebeu nos instintos inferiores e aparentado com o
ressentimento de Rousseau: conseqüentemente romântico - pois em todo romantismo grunhe e guincha
o instinto de vingança de Rousseau. Revolucionário, mas ainda razoavelmente contido pelo medo. Sem
liberdade diante de tudo, que tem força (a opinião pública, a academia, a corte, mesmo Port Royal).
Irritado contra tudo o que há de grandioso no homem e nas coisas, contra tudo o que crê em si. Poeta e
meio-mulher o suficiente, para ainda sentir a grandeza enquanto poder; constantemente retorcido como
aquele famoso verme, porque se sente constantemente pisado. Enquanto crítico sem critério, sem ponto
de apoio e espinha dorsal, com a língua do libertino cosmopolita frente a todas as coisas em geral, mas
sem a própria coragem para a assunção da libertinagem. Enquanto historiador sem filosofia, sem o
poder do olhar filosófico. Por isto, recusando a tarefa de julgar em todas as questões principais e
assumindo para si a "objetividade" como máscara. Por outro lado, ele se comporta de uma forma
completamente diversa diante das coisas, sempre que um paladar refinado e depurado se mostra como a
instância suprema: quando isso acontece, ele tem a coragem diante de si e o prazer de estar junto a si
mesmo - quando isso acontece, ele se torna Mestre. - Segundo certos aspectos, ele é um precursor de
Baudelaire.
4.
A Imitação de Cristo é um dos livros que não consigo segurar entre as mãos sem uma repugnância
fisiológica: ele exala um perfume do eterno-feminino, segundo o qual é preciso que se seja
imediatamente francês - ou wagneriano... Este santo possui um modo de falar do amor, que deixa
curiosos até mesmo os parisienses. - Dizem-me que o mais inteligente dos jesuítas, Auguste Comte, o
homem que quis levar seus franceses através de rodeios da ciência até Roma, inspirou-se neste livro. Eu
acredito: "a religião do coração"...
5.
G. Eliot. - Eles se desembaraçaram do Deus cristão e agora acreditam tanto mais na necessidade de
sustentar a moral cristã. Esta é uma seqüência lógica inglesa, não queremos repreender as senhorinhas
morais à moda de Eliot. Na Inglaterra, à toda pequena emancipação frente à teologia, é preciso
restabelecer para si as honras de um modo apavorante, enquanto um fanático moral. Lá, esta é a
penitência que se paga. - Para nós outros, a coisa se apresenta de uma maneira diferente. Ao se abdicar
da crença cristã, expele-se a pontapés o direito à moral cristã. Esta não se compreende pura e
simplesmente a partir dela mesma: é preciso sempre novamente que se traga este ponto à luz, apesar da
estultícia inglesa. O cristianismo é um sistema, uma visão total das coisas pensada em conjunto. No
que se rompe um de seus conceitos centrais, a crença em Deus, também dissipa-se com isso o todo: não
se tem mais nada de necessário entre os dedos. O cristianismo pressupõe que o homem não sabe, que
ele não pode saber, o que é bom e o que é mau para ele: ele acredita em Deus, que é o único a saber isto.
A moral cristã é um comando; sua origem é transcendente; ela está para além de toda e qualquer crítica, de todo e qualquer direito à crítica; ela só possui verdade, no caso em que Deus é a verdade - ela se erige
e cai junto com a crença em Deus. Se os ingleses de fato acreditassem, eles saberiam por si mesmos
"intuitivamente" o que é bom e mau; se eles conseqüentemente se arraigam à opinião de que o
cristianismo não é mais necessário enquanto garantia da moral, este fato mesmo não é senão meramente
a conseqüência do domínio do juízo de valor cristão e uma expressão da força e da profundidade deste
domínio: de modo que a origem da moral inglesa é esquecida, de modo que o que há de deveras-
condicionado em seu direito à existência não é mais sentido. Para os ingleses, a moral não é mais
problema algum...
6.
Georg Sand. - Eu li as primeiras Cartas de um Viajante. como tudo que provém de Rousseau, elas
são falsas, factícias, balofas, exageradas. Eu não suporto este estilo colorido de tapeçaria; tampouco
quanto a ambição do populacho pelos sentimentos generosos. O pior continua sendo contudo a
"coqueteria" feminina envolta em virilidades, envolta em maneiras de jovens mal-educados . - Quão fria
ela não precisa ter sido em meio a tudo isso, esta artista insuportável! Ela dava corda em si mesma
como a um relógio e escrevia... Fria como Hugo, como Balzac, como todo e qualquer romântico, ao se
lançar ao trabalho poético! E com que auto-suficiência ela deve ter se colocado aí, esta terrível vaca
escritora, que possuía em si algo de alemão no pior sentido, exatamente como Rousseau, seu mestre, e
que, de qualquer modo, só foi possível a partir da decadência do paladar francês! Mas Renan a venera...
7.
Moral para Psicólogos. - Não desempenhar nenhuma psicologia barata! Nunca observar por
observar! Isto dá uma falsa ótica, uma vesguice, algo forçado e desmesurante. Vivenciar enquanto um
querer vivenciar não funciona. Não é permitido olhar para si mesmo em uma vivência, toda olhada
torna-se aí um "mau olhado". Um psicólogo nato protege-se instintivamente de ver por ver; o mesmo
vale para o pintor nato. Ele nunca trabalha "segundo a natureza" - ele abandona ao seu instinto, à sua
camera obscura o transpassamento e a expressão do "caso", da "natureza", do "vivenciado"... Ele não
tem consciência senão do universal, da conclusão, do resultado: ele não conhece aquela abstração
arbitrária do caso singular. - O que acontece, quando se age de outra maneira? Por exemplo, quando à
moda dos novelistas parisienses se implementa a grande e a pequena psicologia barata? Espreita-se aí
do mesmo modo a efetividade, se traz toda noite para casa a mão cheia de curiosidades... Mas eu diria:
só se vê o que por último vem à tona - um monte de nódoas, um mosaico na melhor das hipóteses, de
qualquer forma algo co-adicionado, inquieto e de cores gritantes. São os irmãos Goncourt que alcançam
o que há de pior nisto: eles não alinhavam sequer três frases sem simplesmente ferir os olhos, os olhos
do psicólogo.
A natureza, avaliada artisticamente, não é nenhum modelo. Ela exagera, ela desfigura, ela deixa
brechas. A natureza é o acaso. O estudo "segundo a natureza" parece-me um mau sinal: ele trai
sujeição, fraqueza, fatalismo. Esta prostração pulverizada diante dos fatos pequenos é indigna de um
artista completo. Ver o que é pertence a um outro gênero de espíritos, aos espíritos anti-artísticos, aos
objetivos. É preciso saber quem se é...
8.
Para a Psicologia do Artista. Para que haja a arte, para que haja uma ação e uma visualização
estéticas é incontornável uma precondição fisiológica: a embriaguez. A embriaguez precisa ter elevado
primeiramente a excitabilidade de toda a máquina: senão não se chega à arte. Todos os modos mais
diversamente condicionados da embriaguez ainda possuem a força para isso: antes de tudo, a
embriaguez da excitação sexual, a mais antiga e originária forma da embriaguez. Da mesma forma, a
embriaguez que nasce como conseqüência de todo grande empenho do desejo, de toda e qualquer
afecção forte; a embriaguez da festa, do combate, dos atos de bravura, da vitória, de todo e qualquer
movimento extremo; a embriaguez da crueldade; a embriaguez na destruição; a embriaguez sob certas
influências metereológicas, por exemplo a embriaguez primaveril; ou sob a influência dos narcóticos;
por fim, a embriaguez da vontade, a embriaguez de uma vontade acumulada e dilatada.
- O essencial na embriaguez é o sentimento de elevação da força e de plenitude. A partir deste
sentimento nos entregamos às coisas, as obrigamos a nos tornar, as violentamos. – Denomina-se esse evento como uma idealizarão. Desprendamo-nos aqui de um preconceito: o idealizar não consiste,
como geralmente se pensa, em uma subtração e uma dedução disto que é pequeno e secundário. O que é
decisivo é muito mais uma monstruosa exaltarão dos traços principais, de modo que os outros traços
pertinentes se dissipam.
9.
Neste estado, tudo se enriquece a partir de sua própria plenitude: o que se vê, o que se quer, se vê
dilatado, cerrado, forte, sobrecarregado com a força. O homem que se encontra nesse estado transforma
as coisas até elas refletirem sua potência: até elas serem o reflexo de sua perfeição. Este precisar-
transformar em algo perfeito é - arte. Tudo mesmo o que ele não é, vem-a-ser apesar disto para ele
prazer em si; na arte, o homem goza de si mesmo enquanto perfeição. Seria permitido cogitar-se um
estado oposto, um específico movimento antiartístico dos instintos - um modo de ser que empobrece,
estreita, que deixa todas as coisas tísicas. E, de fato, a história é rica em tais antiartistas, em tais
esfomeados de vida: os quais por necessidade tomam as coisas ainda em si para debilitá-las, os quais
precisam torná-las mais magras. Este é, por exemplo, o caso do genuíno cristão, citemos Pascal: um
cristão que fosse ao mesmo tempo artista não existe... Que não se seja infantil e me lance ao rosto Rafael
ou qualquer cristão homeopático do século dezenove: Rafael dizia sim, Rafael realizava a afirmação,
logo Rafael não era de modo algum um cristão.
10.
Qual o significado dos conceitos opostos introduzidos por mim na estética, o apolíneo e o dionisíaco,
ambos concebidos enquanto modos da embriaguez? - A embriaguez apolínea mantém antes de tudo o
olhar excitado, de forma que ele recebe a força da visão. O pintor, o escultor, o poeta épico são
visionários par excellence. Na instância dionisíaca, ao contrário, o sistema conjunto de afetos é que está
excitado e elevado: de modo que ele descarrega de uma vez só todos os seus meios de expressão e lança
para fora ao mesmo tempo a força de apresentação, de reprodução, de transfiguração, de transformação,
bem como de todo o tipo de mímica e teatralidade. O essencial permanece a facilidade da metamorfose,
a incapacidade de não reagir (- similarmente a certos histéricos que, atendendo a todo e qualquer aceno,
adentram todo e qualquer papel). É impossível para o homem dionisíaco não entender uma sugestão
qualquer, ele não desconsidera nenhum sinal dos afetos, ele tem no grau mais elevado o instinto
intelectivo e divinatório, assim como possui no grau mais elevado a arte da comunicação. Ele se insere
em cada pele e em cada afeto: ele transforma-se constantemente. - A música, tal como a compreendemos
hoje, é igualmente uma excitação e uma descarga conjunta dos afetos, mas, não obstante, apenas o que,
sobrou de um mundo de expressão dos afetos muito mais pleno, um mero residuum do histrionismo
dionisíaco. Para a viabilização da música enquanto arte específica, imobilizou-se uma certa quantidade
de sentidos, antes de tudo o sentido muscular (no mínimo relativamente: pois em certo grau todo ritmo
ainda fala a nossos músculos): de modo que o homem não imita e apresenta mais imediatamente com
seu corpo tudo que sente. Apesar disso, é este o estado normal propriamente dionisíaco, em todo caso o
estado originário; a música é a especificação lentamente alcançada deste estado, em detrimento das
faculdades que lhe são mais intimamente aparentadas.
11.
O ator, o mimo, o dançarino, o músico, o poeta lírico são fundamentalmente aparentados em seus
instintos e são em si um, mas pouco a pouco vão se especializando e se separando um do outro - mesmo
até a contradição. O poeta lírico foi quem permaneceu por mais tempo unido com o músico; o ator com
o dançarino. O arquiteto não apresenta nem um estado dionisíaco, nem um apolíneo: aqui é o grande
ato de vontade, a vontade, que remove montanhas, a embriaguez da grande vontade que possui o afã
pela arte. Os homens mais potentes sempre inspiraram os arquitetos; o arquiteto esteve freqüentemente
sob a sugestão da potência. Na edificação, o orgulho, a vitória sobre o peso, a vontade de potência
devem se tornar visíveis; a arquitetura é uma espécie de eloqüência da potência através das formas; ora
convincente, mesmo lisonjeadora, ora meramente ordenadora. O sentimento mais elevado da potência e
da segurança vem à expressão em meio ao que possui grande estilo. A potência que não precisa mais de
nenhuma prova; que desdenha do agrado; que responde dificilmente; que não sente nenhuma testemunha em torno de si; que vive sem consciência de que há uma contradição em relação a ela; que
repousa em si, fatalisticamente, uma lei sob leis: isto fala de si com grande estilo. -
12.
Eu li a vida de Thomas Carlyle, esta farsa que se produz a despeito do saber e da vontade, esta
interpretação heróico-moral dos estados dispépticos. - Carlyle, um homem de palavras e atitudes fortes,
um retórico por necessidade, que é constantemente agastado pela exigência de uma forte crença e pelo
sentimento da incapacidade para tanto (- nisto ele é um típico romântico!). A exigência de uma forte
crença não é a prova de uma forte crença, muito mais o contrário. Se a possuímos, então nos é
permitido conceder-nos o belo luxo do ceticismo: estamos seguros o suficiente, prontos o suficiente,
comprometidos o suficiente para tanto. Carlyle faz com que algo adormeça em si através do fortíssimo
de sua veneração por homens de crenças fortes e através de sua ira contra os menos unidimensionais: ele
carece de barulho. Uma constante deslealdade frente a si mesmo - este é o seu proprium, com isto ele é
e permanece interessante. É verdade que ele é admirado na Inglaterra exatamente por causa de sua
deslealdade... Mas ora, isto é inglês; e, considerando que o inglês é o povo da cant [hipocrisia] perfeita,
é mesmo legítimo, e não apenas compreensível. No fundo, Carlyle é um ateu inglês, que busca sua
honra justamente no fato de não o ser.
13.
Emerson - Muito mais esclarecido, errante, múltiplo, refinado do que Carlyle; e, antes de tudo, mais
feliz... Alguém que não se alimenta senão com ambrósia e que deixa de lado o que há de indigesto nas
coisas. Tomado em contraposição a Carlyle, um homem de gosto. - Carlyle, porém, que tanto o amou,
dizia dele: "ele não nos dá o suficiente para morder": o que pode até ser dito com direito, mas não em
detrimento de Emerson. - Emerson possui aquela boa e espirituosa serenidade, que desencoraja toda
seriedade; ele simplesmente não sabe o quão velho já é e o quão jovem ainda será - ele poderia dizer de
si com uma sentença de Lope de Vega: "yo me sucedo a mi mismo". Seu espírito sempre encontra
razões, para estar satisfeito e mesmo agradecido; e por vezes ele toca a serena transcendência daquele
homem distinto, que retornava de um encontro amoroso tarquam rebene gesta. "Ut de sint vires, ele
dizia agradecido, tamen est laudanda voluptas".
14.
Anti-Darwin. No que concerne à célebre luta pela vida, ela me parece a princípio mais afirmada do
que provada. Ela acontece, mas enquanto exceção; o aspecto conjunto da vida não é a indigência e a
penúria famélicas, mas muito mais a riqueza, a exuberância, mesmo o desperdício absurdo - onde há
luta, luta-se por potência... Não se deve confundir Malthus com a natureza. No entanto, suposto que
haja esta luta e, de fato, ela se dá -, ela transcorre infelizmente de modo inverso ao que a escola de
Darwin deseja; de modo inverso ao que talvez se pudesse desejar: isto é, em detrimento dos fortes, dos
privilegiados, das felizes exceções. As espécies não crescem em meio à perfeição: os fracos sempre se
tornam novamente senhores sobre os fortes. Isto acontece porque eles estão em grande número e porque
eles também são mais inteligentes... Darwin esqueceu o espírito (- isto é inglês!), os fracos possuem
mais espírito... É preciso ter necessidade de espírito para obter um espírito - nós o perdemos quando não
temos mais necessidade dele. Quem possui a força se desprende do espírito (- "Deixemo-lo ir!" pensa-
se hoje na Alemanha - "O império há, contudo, de permanecer conosco" ... ). Eu entendo por Espírito,
como se vê, a cautela, a paciência, a astúcia, a dissimulação, o grande autocontrole e tudo que é mimicry
(a este último pertence uma grande parte da assim chamada virtude).
15.
Casuística de Psicólogo. - O psicólogo é alguém que conhece o homem: para que estuda
propriamente os homens? Ele quer retirar deles pequenas vantagens, ou mesmo grandes - ele é um
político!... Este aí também é um conhecedor dos homens: e vós dizeis que ele não quer com isso nada
para si, que ele é um grande "impessoal". Atentai mais incisivamente! Talvez ele ainda queira até
mesmo uma vantagem pior: sentir-se superior aos homens, ter o direito de olhar para eles desde cima,
não se misturar mais com eles. Este "impessoal" é um desprezador de homens: e aquele primeiro é da espécie mais humana, independentemente do que possa dizer a aparência. Ele se coloca no mínimo
como igual, ele se insere...
16.
O compasso psicológico dos alemães parece-me estar colocado em questão por toda uma série de
casos, cuja modéstia me impede de apresentar a lista. Em um caso não me faltará um grande ensejo para
fundamentar minha tese: eu guardo rancor dos alemães por terem se equivocado quanto a Kant e a sua
"Filosofia das Portas dos Fundos", como a chamo. - Isto não foi condizente com a tipologia da retidão
intelectual. - Uma outra coisa que não consigo escutar é um famigerado e nefando "e": os alemães dizem
"Goethe e Schiller". Temia que dissessem "Schiller e Goethe"... Então não se conhece este Schiller? -
Mas há ainda um "e" pior; ouvi com meus próprios ouvidos (apesar de ser apenas dentre professores
universitários): "Schopenhauer e Hartmann"...
17.
Os homens mais espirituosos, pressupondo-se que eles são também os mais corajosos, são aqueles
que melhor e mais amplamente vivenciam as tragédias mais dolorosas: mesmo por isso, contudo, eles
honram a vida; porque ela lhes contrapõe o seu maior antagonismo.
18.
Para a "Consciência Intelectual". - Nada me parece hoje mais raro do que a genuína dissimulação.
Eu tenho uma grande suspeita quanto ao fato de o ar brando de nossa cultura não ser propício para esta
planta. A dissimulação pertence à era das fortes crenças: à era em que os homens, mesmo coagidos a
ostentar uma outra crença, não se apartavam da crença que tinham. Hoje, eles a deixam de lado; ou, o
que é ainda mais comum, eles adquirem uma segunda crença - em todo caso, eles permanecem sinceros.
Não há a menor dúvida de que hoje existe um número muito maior de possíveis convicções do que
outrora: possíveis, isto é, permitidas, isto é, inofensivas. Daí emerge a tolerância para consigo mesmo. -
A tolerância para consigo mesmo abre espaço para o surgimento de muitas convicções: estas mesmas
convicções convivem tranqüilamente umas ao lado das outras - elas se protegem, como todo mundo
hoje, da eventualidade de se comprometer. Com o que é que as pessoas se comprometem hoje em dia?
Quando se porta uma conseqüência. Quando se caminha em linha reta. Quando suas palavras possuem
menos do que cinco sentidos. Quando se é genuíno... Eu temo enormemente que o homem moderno
seja muito acomodado para possuir certos vícios: que estes venham então a se extinguir completamente.
Todo o mal, que é condicionado pela vontade forte - e talvez não haja nada de mal onde falta a força da
vontade -, degenera-se em virtude no interior de nossa atmosfera tépida... Os menos dissimulados que
conheci imitavam a dissimulação: eles eram, como hoje em dia o são um a cada dez homens, atores. -
19.
Belo e Feio. - Nada é mais condicionado, dizemos limitado, do que o nosso sentimento do belo.
Quem quisesse pensá-lo como separado do prazer que o homem experimenta junto a si mesmo, perderia
imediatamente a base e o solo sob seus pés. O "belo em si" é tão-somente uma palavra, nunca um
conceito. No belo, o homem se coloca enquanto medida da perfeição; em casos selecionados, ele louva
a si mesmo. Um gênero não pode senão afirmar apenas a si mesmo desta forma. Seus instintos mais
inferiores, o instinto de auto-conservação e de auto-expansão, brilham ainda em tais sublimidades. O
homem crê que o próprio mundo está coberto pela beleza - ele esquece de si enquanto sua causa. Ele
sozinho presenteou o mundo com a beleza, ah!, apenas com uma beleza humana, demasiadamente
humana... No fundo, o homem se espelha nas coisas, ele toma por belo tudo o que lança de volta sua
imagem: o juízo "belo" é sua vaidade genérica... É claro que a seguinte pergunta pode sussurrar para o
cético uma pequena suspeita: o mundo torna-se efetivamente belo, à medida que o homem o toma como
belo? Ele o humanizou: isto é tudo. Mas nada, absolutamente nada nos garante que justamente o
homem forneça o modelo da beleza. Quem sabe como ele se apresenta aos olhos de um elevado juiz de
gosto? Talvez ousado? Talvez mesmo animador? Talvez um pouco arbitrário?... "Oh Dioniso, divino,
por que tu me puxas as orelhas?", perguntou Ariadne certa vez a seu amante filosófico, em um daqueles célebres diálogos por sobre a ilha de Naxos. "Eu vejo algo de gracioso em tuas orelhas, Ariadne: por
que elas não são ainda mais longas?"
20.
Nada é belo, só o homem é belo: é sobre esta ingenuidade que repousa toda e qualquer estética, ela é
sua primeira verdade. Acrescentemos imediatamente ainda sua segunda verdade: nada é feio senão
quando é o homem que o degenera - com isso o reino do juízo estético está circunscrito. - Conferido
fisiologicamente, tudo o que é feio enfraquece e aflige o homem. Ele faz com que o homem relembre o
declínio, o perigo, a impotência; o homem experimenta de fato aí uma dissipação de força. Pode-se
medir o efeito do feio com o dinamômetro. Em geral, ao padecer de uma pressão que o impele para
baixo, o homem fareja a aproximação de algo "feio". Seu sentimento de potência, sua vontade de
potência, sua coragem, seu orgulho - tudo isto decai com o feio, tudo isto se eleva com o belo... Em um
caso como no outro, tiramos uma conclusão: as premissas para tanto estão acumuladas, sob a forma de
uma abundância monstruosa, nos instintos. O feio é entendido como um sinal e um sintoma de
degenerescência: o que mais longinquamente nos faz lembrar a degenerescência produz em nós o
surgimento do juízo "feio". Todo indício de extenuação, de pesar, de senilidade, de cansaço, toda e
qualquer espécie de ausência de liberdade, tal como o espasmo, tal como a paralisia, sobretudo o cheiro,
a cor, as formas da dissolução, da decomposição, e mesmo que isto se transforme em símbolo no interior
de uma última atenuação - tudo isto evoca a mesma reação, o juízo de valor "feio". Um ódio eclode
neste ponto: a quem é que o homem odeia aí? Mas não há nenhuma dúvida: a decadência de seu tipo.
O seu ódio emerge aí do instinto mais profundo de seu gênero; neste ódio há calafrio, cuidado,
profundidade, uma certa visão à distância - ele é o ódio mais profundo que há. É por sua causa que a arte
é profunda...
21.
Schopenhauer. - Para um psicólogo, Schopenhauer, o último alemão a merecer consideração (a ser
um acontecimento europeu tanto quanto Goethe, quanto Hegel, quanto Heinrich Heine, e não
meramente um acontecimento local, um acontecimento "nacional"), é um caso de primeira ordem: a
saber, enquanto tentativa malignamente genial de trazer a campo exatamente as contra-instâncias, as
grandes auto-afirmações da "vontade de vida", as formas de exuberância da vida em favor de uma
depreciação total e niilista da vida. Ele interpretou, segundo uma seqüência, a arte, o heroísmo, o gênio,
a beleza, a grande compaixão, o conhecimento, a vontade de verdade e a tragédia enquanto
conseqüências da "negação" ou da necessidade de negação da “vontade” - a maior fabricação de moedas
falsas já vista na história; subtraindo-se o cristianismo. Considerado mais exatamente, ele não é quanto
a isto mais do que o herdeiro da interpretação cristã. Com uma diferença apenas, à medida que também
soube aprovar em um sentido cristão, o que equivale a dizer em um sentido niilista, o que tinha sido
recusado pelo cristianismo: os grandes fatos culturais da humanidade (- a saber, enquanto caminhos
para a "redenção", enquanto formas prévias da "redenção", enquanto estimulantes da necessidade de
“redenção”...)
22.
Eu tomo um caso isolado. Schopenhauer fala da beleza com um fervor melancólico, - por que em
última instância? Porque ele vê nela uma ponte, sobre a qual pode-se ir mais longe ou então sobre a
qual se acaba por ficar sedento de ir mais longe... Ela é para ele a redenção da vontade por alguns
instantes - ela impele para uma redenção eterna... Especificamente, ele a elogia enquanto redentora do
"foco da vontade", da sexualidade - na beleza, ele vê a negação da pulsão reprodutora... Um santo
deveras bizarro! Alguém te contradiz, eu receio, e este alguém é a natureza. Para que há em geral a
beleza no tom, na cor, no perfume, no movimento rítmico da natureza? O que faz manifestar a beleza? -
Felizmente também um filósofo lhe contradiz. Nenhuma autoridade menor que a do divino Platão (-
assim o chama o próprio Schopenhauer) sustém uma outra tese: a de que toda beleza estimula a
reprodução - a de que este é justamente o proprium de seu efeito, do que há de mais sensível até o que há de mais espiritual...
23.
Platão prossegue. Ele diz com uma inocência, para a qual é preciso ser grego e não "cristão", que
não haveria absolutamente nenhuma filosofia platônica se não houvesse tantos jovens belos em Atenas:
era só a visão destes jovens que propiciava a transposição da alma do filósofo em um delírio erótico e
não lhe deixava espaço para nenhuma quietude, até que ela tivesse lançado as sementes de todas as
coisas elevadas em uma terra tão bela. Também um santo deveras bizarro! Nós não nos fiamos em
nossos ouvidos, apesar mesmo de confiarmos em Platão. Presume-se ao menos que em Atenas tinha-se
filosofado de um modo diverso, sobretudo publicamente. Nada é menos grego do que a tecitura de uma
teia conceitual de aracnídea por um ermitão, amor intelectualis dei à moda de Espinoza. A filosofia à
moda de Platão poderia ser definida antes enquanto uma competição erótica, enquanto o
aperfeiçoamento e a interiorização da velha ginástica agonística e de seus pressupostos... O que brotou
por fim deste erotismo filosófico de Platão? Uma nova forma artística do agon grego, a dialética. - Eu
me lembro ainda, contra Schopenhauer e em honra de Platão, que também a cultura e a literatura mais
elevadas da França clássica floresceram em sua totalidade sobre o solo do interesse sexual. Pode-se
procurar por toda parte aí a galanteria, os sentidos, a competição sexual, a "fêmea" - nunca se procurará
em vão.
24.
L'art pour l'art13. - A luta contra a finalidade na arte é sempre a luta contra a tendência moralizante
na arte, contra a sua subordinação à moral. L'art pour l'art significa: "Que o diabo carregue a moral!" -
Mas até mesmo esta inimizade denuncia a força preponderante do preconceito. Se se exclui da arte a
finalidade própria à pregação moral e ao melhoramento da humanidade, então ainda está longe de seguir
daí que a arte é em geral sem finalidade, sem meta, sem sentido; em resumo, a arte pela arte - um verme
que morde seu próprio rabo. É preferível nenhuma finalidade a uma finalidade da moral!" - assim fala a
mera paixão. Um psicólogo pergunta em contrapartida: o que faz toda arte? ela não louva? ela não
glorifica? ela não seleciona? não realça? Com tudo isto, ela fortalece e enfraquece certas estimativas de
valor... Isto é apenas um acessório? Um acaso? Algo de que o interesse do artista não tomaria parte
absolutamente? Ou então: não é o pressuposto para tanto que o artista esteja em condições de
empreender tudo isto ... ? Seu instinto mais profundo tende para a arte, ou, ao invés disso, muito mais
para o sentido da arte, para a vida? Para algo desejável da vida? - A arte é o maior estimulante para a
vida: como se poderia entendê-la como sem finalidade, como sem meta, como l'art pour l'art? Uma
pergunta ressurge: a arte faz com que se manifeste também algo feio, duro, discutível da vida - ela não
parece com isto dirimir a paixão pela vida? - E de fato houve filósofos que lhe emprestaram este sentido:
"apartar-se da vontade", ensinava Schopenhauer enquanto intuito total da arte, "estar afinado com a
resignação" honrava ele enquanto a grande utilidade da tragédia. - Mas isto - já dei a entender - é uma
ótica de pessimista e um "mau-olhado": precisa-se apelar para os próprios artistas. O que é que o artista
trágico comunica de si? Não é exatamente um estado sem temor frente ao temível e problemático, que
ele indica? - Esse estado mesmo é algo desejável; quem o conhece o louva com os louvores mais
elevados. Ele o comunica, ele precisa comunicá-lo, pressuposto que é um artista, um gênio da
comunicação. A valentia e a liberdade do sentimento frente a um inimigo poderoso, frente a uma
sublime adversidade, frente a um problema que desperta horror - esse estado triunfal é aquele que o
artista seleciona, que ele glorifica. Diante da tragédia, o que há de belicoso em nossa alma festeja suas
Saturnais; quem procura por sofrimento, o homem heróico, exalta com a tragédia sua existência - a ele
apenas, o artista trágico oferta o cálice desta dulcíssima crueldade. -
25.
Contentar-se com os homens, manter a casa aberta com seu coração, isto é liberal, mas é meramente
liberal. Conhece-se os corações que são aptos à nobre hospitalidade, junto às muitas janelas cobertas e
aos postigos cerrados: seus melhores espaços mantêm-se vazios. Por que afinal? - Porque eles esperam
por hóspedes, com os quais a gente não "se contenta"...
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Crepúsculo dos idolos
RandomCrepúsculo dos Ídolos, ou Como Filosofar com o Martelo, foi a penúltima obra do filósofo alemão Nietzsche, escrita e impressa em 1888, pouco antes de o filósofo perder a razão.