OS "MELHORADORES" DA HUMANIDADE

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1.
Conhece-se minha exigência de que os filósofos se coloquem para além do Bem e do Mal, - de que
eles tenham abaixo de si a ilusão do juízo moral. Esta exigência deriva-se de uma intelecção que foi
formulada pela primeira vez por mim: a intelecção de que não há absolutamente nenhum fato moral. O
juízo moral possui em comum com o juízo religioso a crença em realidades que não são de modo algum
realidades. A moral é apenas uma exegese de certos fenômenos; falando mais determinadamente, ela é
uma exegese equivocada. O juízo moral pertence, tanto quanto o religioso, a um grau de insciência, no
qual falta até mesmo o conceito do real, a diferenciação entre o real e o imaginário: de maneira que, em
um tal grau, a "verdade" não faz senão designar as coisas que hoje chamamos "construções
imaginárias". A esse respeito, o juízo moral nunca pode ser tomado ao pé da letra: ele nunca encerra
enquanto tal mais do que um absurdo. Mas ele permanece inestimável enquanto Semiótica: ao menospara os que sabem ele revela as realidades mais preciosas das culturas e das interioridades, que não
sabiam o bastante de si para "entenderem" a si mesmas. A moral é meramente um discurso de signos,
meramente sintomatologia: é preciso já saber do que se trata para tirar dela algum proveito.
2.
De maneira totalmente provisória, eis um primeiro exemplo! Em todos os tempos quis-se "melhorar"
os homens: este anseio antes de tudo chamava-se moral. Mas sob a mesma palavra escondem-se todas
as tendências mais diversas. Tanto a domesticação da besta humana quanto a criação de um
determinado gênero de homem foi chamada "melhoramento": somente estes termos zoológicos
expressam realidades. Realidades das quais com certeza o sacerdote, o típico "melhorador", nada sabe -
nada quer saber... Chamar a domesticação de um animal seu "melhoramento" soa, para nós, quase como
uma piada. Quem sabe o que acontece nos amestramentos em geral duvida de que a besta seja aí mesmo
"melhorada". Ela é enfraquecida, tornam-na menos nociva, ela se transforma em uma besta doentia
através do afeto depressivo do medo, através do sofrimento, através das chagas, através da fome. - Com
os homens domesticados que os sacerdotes "melhoram" não se passa nada de diferente. Na baixa Idade
Média, onde de fato a igreja era antes de tudo um amestramento, caçava-se por toda parte os mais belos
exemplares das "bestas louras". "Melhoravam-se", por exemplo, os nobres alemães. Mas com o que se
parecia em seguida um tal alemão "melhorado", seduzido para o interior do claustro? Com uma
caricatura do homem, com um aborto. Ele tinha se tornado um "pecador", ele estava em uma jaula,
tinham-no encarcerado entre puros conceitos apavorantes... Aí jazia ele, doente, miserável, malévolo
para consigo mesmo; cheio de ódio contra os impulsos à vida, cheio de suspeita contra tudo que ainda
era forte e venturoso. Resumindo, um "Cristão"... Fisiologicamente falando: o único meio de
enfraquecer a besta em meio à luta contra ela pode ser adoecê-la. A igreja compreendeu isso: ela
perverteu o homem, ela o tornou fraco, mas pretendeu tê-lo "melhorado"...
3.
Tomemos o outro caso da assim chamada moral, o caso da criação de uma determinada raça e
espécie. O exemplo mais grandioso disso é dado pela moral indiana, sancionada religiosamente
enquanto "Lei de Manu". A tarefa de não cultivar menos do que quatro raças de uma só vez está aqui
colocada: uma raça sacerdotal, uma guerreira, uma de comerciantes e de agricultores, e, finalmente, uma
raça de serviçais, os sudras. Evidentemente, não estamos mais aqui entre domadores de animais: uma
espécie cem vezes mais sutil e racional de homem é o pressuposto para que se possa mesmo apenas
conceber o plano de uma tal criação. Respira-se melhor e mais profundamente quando se sai da
atmosfera de cárcere e de doença cristã e se adentra este mundo mais saudável, mais elevado, mais
amplo. Quão miserável é o "novo testamento" diante de Manu, como ele cheira mal! - Mas também esta
organização sentiu a necessidade de ser terrível. - Desta vez não na luta com a besta, mas com o
conceito que lhe é contraposto, com o homem que não se deixa cultivar, com o homem da mistureba,
com o chandala. - E ela não teve uma vez mais nenhum outro meio de torná-lo inofensivo, fraco, senão
adoecê-lo - esta foi a luta com o "grande número". Talvez não haja nada mais contraditório para o
nosso sentimento do que estas medidas de proteção da moral hindu. O terceiro edito (Avadana-Sastra
I), por exemplo, o dos "legumes impuros", ordena que a única alimentação permitida ao chandala deve
ser o alho e a cebola, visto que o escrito sagrado proíbe dar-lhes cereais ou frutos que contenham grãos,
bem como proíbe dar-lhes água ou fogo. O mesmo edito estabelece que a água, da qual eles têm
necessidade, não pode ser pega nem nos rios, nem nas fontes, nem dos tanques, mas somente nas vias de
acesso aos pântanos e nos buracos que surgem das pegadas dos animais. Do mesmo modo lhes é
proibido lavar suas roupas, bem como lavar a si mesmos, à medida que a água que lhes é concedida pela
graça só pode ser utilizada para matar a sede. Por fim, uma proibição que se dirige às mulheres dos
sudras, a proibição de auxiliar as mulheres chandalas no nascimento; da mesma forma que para estas
últimas ainda é proibida a ajuda mútua... O resultado de uma tal polícia sanitária não tardou: epidemias
homicidas, doenças venéreas espantosas e então novamente "a lei da faca", ordenando a circuncisão para
as crianças do sexo masculino, a ablação dos pequenos lábios para as crianças do sexo feminino. O
próprio Manu diz: "Os chandalas são o fruto do adultério, do incesto e do crime (- esta a conseqüência
necessária do conceito de criação). Elas só devem ter por vestimentas os farrapos dos cadáveres, por
louça potes arrebentados, por jóias ferro antigo, por serviço religioso apenas os maus espíritos; elas devem errar de um lugar para o outro sem descanso. É-Ihes proibido escrever da esquerda para a direita
e servir-se da mão direita para escrever: a utilização da mão direita e da escrita da esquerda para a direita
é reservada apenas aos virtuosos, às pessoas de raça". -
4.
Estes decretos são bastante instrutivos: neles temos a humanidade ariana, totalmente pura,
totalmente originária. Aprendemos que o conceito de "sangue puro" é o oposto de um conceito
inofensivo, Por outro lado, fica claro em que povo perpetuou-se o ódio, o ódio da chandala contra esta
"humanidade". Em que povo o ódio se transformou em religião, em gênio... Sob este ponto de vista, os
evangelhos são documentos de primeira linha; mais ainda o livro de Henoch. - O cristianismo, que surge
da raiz judia e só é compreensível como uma planta deste solo, representa o movimento de oposição à
toda moral da criação, da raça, do privilégio: ele é a religião antiariana par excellence. O cristianismo,
a transvaloração de todos os valores arianos, a vitória dos valores do chandala, o evangelho pregado aos
pobres e aos humildes, a insurreição conjunta de todas as camadas mais baixas, dos miseráveis, dos
fracassados, deserdados contra a "raça". - A vingança imortal do chandala como religião do amor...
5.
A moral da criação e a moral da domesticação são plenamente dignas uma da outra, no que concerne
aos meios de se impor. Podemos apresentar como princípio mais elevado o seguinte: para levar a termo
a moral é necessário ter a vontade incondicionada do contrário. Este é o grande problema, o problema
sinistro, ao qual persegui mais longamente: a psicologia dos "melhoradores" da humanidade. Um fato
diminuto e no fundo modesto, este da assim chamada pia fraus8
, abriu-me um primeiro acesso a este
problema. A pia fraus foi a herança de todos os filósofos e sacerdotes que “melhoraram” a humanidade.
Nem Manu, nem Platão, nem Confúcio, nem as doutrinas hebréias e cristãs jamais duvidaram de seu
direito à mentira. Eles duvidaram de direitos totalmente diversos... Expresso em uma fórmula, poder-
se-ia dizer: todos os meios, através dos quais até aqui a humanidade deveria se tornar moral, foram
fundamentalmente imorais.

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