06 | problems

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             PASSAMOS A NOITE inteira acordados, prestes a amanhecer, a vi mais exausta, que acabou dormindo toda torta na bagunça das cobertas e travesseiros revirados na cama

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             PASSAMOS A NOITE inteira acordados, prestes a amanhecer, a vi mais exausta, que acabou dormindo toda torta na bagunça das cobertas e travesseiros revirados na cama. 

Com sutileza, a cobri e a acomodei no centro do colchão, sem que tivesse perigo de rolar e cair no carpete. Ayla estava tão cansada, dormia como uma pedra, a face calma e despreocupada me deixava paralisado em apreciação: deslizei meus dedos em sua testa suada, retirando as mechas claras que cobriam uma parte de seus olhos fechados, deixando em sua pele um pequeno beijo.

Ela enfrentou tantos problemas. Conta-la a verdade poderia traze-los de volta e pensar nessa possibilidade, começava a ser uma tortura ansiosa. Queria que eles ficassem para sempre no passado. 

O giroflex da polícia reluzia nos becos escuros, tais caminhos que optávamos para fugir dos oficiais que nos caçavam como animais. Corríamos tanto, o coração parecia que ia explodir de tão rápido que batia, transformando a fisgada intensa no fígado em uma dor irrelevante, como se fôssemos desmaiar em cima do nosso próprio suor. Mesmo a Ayla sendo filha de um policial, isso nunca pareceu impedi-la de ter inúmeras contrariedades com as leis. 

— Sei que tem os seus problemas, também tenho os meus. Por isso, deveria ir. — Disse sem me olhar, arremessando um tijolo na janela da sua sala e adentrando-a sem precisar das chaves. Naquele ano, as coisas estavam ainda piores: não bastava vê-la vinculada a um vício desenfreado com bebidas alcoólicas, ela sempre passava por explosões agressivas o tempo todo, até o momento em que apagava. Achava ser o causador de seus principais problemas, mas pensando de outro jeito, nos distanciarmos foi uma das circunstâncias que os agravaram. 

A vi subir os degraus até seu quarto, em um corrida desesperada. Ela arrancava todas as peças de roupas que preenchiam seu guarda-roupa de madeira, jogando-as em uma bolsa de viagem. Ayla cheirava á tequila patrón e exalava violência, seus olhos estavam inchados de um choro prolongado e sujos com rímel. Nem parecia a mesma pessoa que antes. 

— Por que está agindo como se fosse novo? — Tentei acalma-la, sendo que ela parecia passar por uma crise de pânico. Já havíamos fugido da autoridade outras vezes, nem sequer fomos apanhados, não havia motivos para pavor. 

— Eles não estão e nem vão procurar por você. — Fechou a persiana, com o olhar vidrado ao meu, igual a um viciado em ópio. Como não captei os evidentes sinais de alucinação alcoólica que ela tinha? Talvez, se estivesse mais sóbrio, poderia. — Vamos viver nossas vidas sob nossos próprios termos. Não posso ficar parada aqui, esperando meu pai chegar, me humilhar e me despejar. 

Abaixei a cabeça, receoso.

— Foda-se. — Tratou de recolher o restante de seus objetos pessoais quando notou minha oposição a sua ideia insana e momentânea de fugir, sendo barrada na porta por mim, assim que tomou a iniciativa de partir. Não podia deixa-la ir naquele estado. Ayla relutou fisicamente, tentando contornar-me, mas também não deixou de tentar me convencer: — Combinamos tantas coisas, para que esperar o fim do colégio?  Você mesmo disse que está cansado de ser um desconhecido e viver sempre nos fundos. É agora, Gustav. 

— Não, Lua. — Segurei em seu braço levemente, fazendo-a parar de andar de um lado para um outro. — Combinamos em deixar essa cidade quando as coisas estivessem resolvidas, você quer sair agora, por desespero. É o contrário de tudo que almejamos. 

Raramente discordávamos das coisas, mas ela não conseguiria me tirar a razão em uma situação daquela. Mais tarde, na mesma noite, quando a sobriedade viera nos atingir, acabei abrigando-a em minha casa e foram dois meses mágicos, tanto quanto trágicos, pois me via ainda mais preso a ela, e ela se via ainda mais atolada em encrencas. 

A cada revivência, deslizava a máquina de corte sobre meus cabelos, raspando-o até que não sobrasse quase nada nas laterais. Não foi difícil me despedir da aparência anterior, apesar de ser assustador ter que enxergar o amontoado de fios que forravam o fundo da pia. Mudaria totalmente, e iria começar com algo que planejava há muito tempo.

O barulho do aparelho eletrônico acabou acordando-a, e pelo reflexo do espelho a vi levantando da cama enquanto coçava os olhos e dirigia-se até o banheiro. 

— Como antigamente... — Sorriu ao me ver, levando suas mãos curiosas e macias em direção ao couro cabeludo, balançando os fios ainda restantes. — Lembro-me que você costumava pintar as unhas de vermelho e raspar o cabelo toda vez que se enjoava da coloração passada. Sempre diferente.

— Eu ainda sou o mesmo cara de antes. — Brinquei, fazendo uma careta. Ela atava a rir quando me via com os olhos vesgos e língua para fora; o humor simples dela ainda era o mesmo. — Consegue se lembrar de tudo, Lua?

Perguntei em tom de impotência. Não queria pretextos vívidos para que ela viesse a retornar ao descontrole com as bebidas, sequer as drogas. Lutávamos contra os mesmos demônios. 

— Também me lembro da parte merda do passado, se é isso que quer saber. — Rodeou minha cintura, me abraçando por trás. Prosseguiu, com o rosto encostado em minhas costas desnudas: — As coisas tóxicas que fiz, os surtos que te fazia aguentar. Em geral, tudo voltou como ser despertado com água fria. Mas, não poderia estar mais feliz. 

Ri nasalado, mais tranquilo. Ayla parecia estar no controle. 

— Desde que acordei e não me lembrei de nada, era como se vivesse em uma constante encenação. Nunca sabia de nada, nunca entendia as coisas ao meu redor. — Desabafou. — Era uma existência mentirosa, sem respostas e vazia. — Silêncio. Com certeza, estava pensando em algo profundo. — Eu passei a minha infância e adolescência inteira sofrendo com a perda repentina das pessoas, Peep. Preciso saber, se você ficará dessa vez. 

Analisei-a como uma verdadeira divindade superior, tão apaixonado quanto antes. Amava seus defeitos, suas qualidades, suas dúvidas. A amava por completo.

— Faria qualquer coisa por você. — Encostei seus lábios nos meus rapidamente, enquanto buscava pelos frascos dos farmacêuticos. Junto com ela, despejei as capsulas de xanax no vaso sanitário, dando descarga em seguida. —  Vou me manter limpo e faremos nossas juras de doze anos, verdadeiras.

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