Q U A T R O | Agulhas nos Poros

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Meus dias são sempre solitários e programados. Levanto-me da cama às 08h00 da manhã, faço exercícios, converso com minha mãe, me alimento, descanso, converso com minha mãe, faço os testes, fico na sala de estar, vendo noticiários antigos, a procura de um rosto conhecido que não seja o meu. E, antes de dormir, converso com minha mãe. Claro que converso. É assim desde que entendi que preciso dela, não só como mãe, mas como ser humano. Como outro ser humano. Se eu estivesse totalmente sozinha, sem contato nenhum com alguém, já teria enlouquecido com certeza.
Ela também acompanha todos os meus testes. Acredito que quando não está falando comigo, sua atenção está totalmente voltada a análise e avaliação de cada um deles. Isso é muito importante. Tornou-se o trabalho de nossas vidas. É tudo que temos. O meu sangue. A minha pele. Eu. Salvar o mundo.
Quando toda essa bomba de vírus e Lei Marcial explodiu, minha mãe estava em Hong-Kong, em mais uma de suas pesquisas para desenvolver uma cura para minha doença. Ela sempre fazia esse tipo de viagem, para esse tipo de pesquisa e para o meu tipo de doença. Era assim há algum tempo.
Antes do contato físico ser proibido, eu já não o tinha. Minha rara doença, que deixava minha pele hiper sensível, não me permitia sair a luz do sol, e, como não ia a escola, não tinha amigos e nenhum tipo de relacionamento, durante a noite, enquanto todos estavam em boates, Subways, cinemas e encontros românticos, eu não tinha para onde ir a não ser ficar em casa, com minha mãe. Era um saco. Um completo saco. Não que hoje tenha melhorado.
Ver, de uma hora para outra, o mundo inteiro vivendo dias como os meus, não me trouxe esperança alguma. Não me trouxe nada de bom.
Saber que as pessoas estavam lá fora, se divertindo, se amando, vivendo suas vidas, me fazia acreditar que um dia seria assim comigo. Imaginar estar lá fora com elas, me fazia ter mais fé que minha mãe encontraria uma cura para minha doença. Porém, com todos isolados e solitários, morrendo instantaneamente com um toque, sinto-me como um buraco negro, sugando tudo ao meu redor para o meu mundo de trevas e destruição. Odeio isso.
Por isso, quando estou fazendo meus testes, tento me distrair o máximo que consigo dessa merda toda. Isso até me faz suar mais, como meus monitores exigem que aconteça. Coloco os fios pelo corpo, sinto aquela dorzinha inicial, ao sentir as pequenas e finas agulhas invadir meus poros, dou enter na vídeo aula de boxe e dou início à minha série diária de testes.
As pequenas agulhas nos meus poros coletam e examinam meu suor e sangue, passando pelos monitores mecânicos e enviando-os para minha mãe, em Hong-Kong.
Já fazemos isso há dois anos.
Quando descobrimos que minha pele era imune ao vírus e que meu sistema imunológico se adaptou a anomalia genética, à Doença do Toque, percebemos que podíamos dar uma segunda chance ao mundo. Percebemos que podíamos salvá-lo.
Minha mãe mora num super laboratório, onde têm todos os recursos para desenvolver uma cura. Eu, moro num apartamento do outro lado do mundo, fazendo testes físicos e enfiando agulhas no corpo para que tenhamos mais chances. Estamos presas. Fazemos o que é necessário.

LONELY - O último toque de MayaOnde histórias criam vida. Descubra agora