Estou há mais de um mês pensando e tentando definir o que estamos vivendo, o rumo que estamos tomando. Nunca se analisou tanto comportamentos, preconceitos velados, inconscientes, arraigados, escancarados... Nunca se cobrou tanto uma postura mais empática, humana, civilizada. E nunca se teve tanta ignorância declarada também.
Sim. Combate-se a intolerância com intolerância, preconceito com preconceito... A internet virou um amplo faroeste, com armas verbais, acaloradas, cuspidas e enviadas. Virou um local de catarse, onde o IP muitas vezes dá a sensação de escudo e o enter é um disparo mortal. Pessoas se matam por causa de imagens distribuídas sem consentimento, palavras ditas sem que se pondere o impacto, ataques organizados e vinganças sem sentido.
Confesso que não estou sabendo lidar com esse paradoxo. De um lado, surgem reflexões maravilhosas, como a última que tive oportunidade de assistir, o "stand-up" de Hannah Gadsby, Nanette (cata na Netflix!), que é de uma clareza absurda a respeito de gênero, sexualidade e preconceitos que machucam, inclusive no humor e com humor. E tem o Spartakus Blog, Henry Bugalho, A Nova Máquina do Tempo, Ana Roxo, Jout Jout, Papo de Pretas, Ana Paula Xogani, Tia Má e tantos outros refletindo sobre a vida humana e, de outro lado, muita, muita desinformação, preconceito e raiva...
Hoje, no Bom Dia Brasil, naquele quadro do "Brasil que eu quero", um menino que devia ter seus 7, 8 anos, de nome Francisco e da cidade de Joca Marques, no Piauí, disse que o Brasil que ele quer – em breves linhas – é um Brasil em que os políticos coloquem mais merenda nos colégios e terminou gritando, implorando: "Cadê o frango, as sardinhas?!". Guarda aí esse tapa.
Eu assisto quase toda terça-feira, às vezes aos domingos também, um programa chamado "Largados e Pelados", no Discovery. Nesse programa sempre há um homem e uma mulher totalmente nus em um lugar isolado – selva, mangue, praia, ilha etc. – sobrevivendo 21 dias somente com dois (às vezes três) itens de sobrevivência. Eles precisam fazer o próprio abrigo, fogo, caçar e se virar nesse desafio. Uma boa parcela desiste, muitas vezes motivados pela fome. Todos reclamam que, por causa da fome, não estão "pensando direito".
Voltando lá no Francisco, porque o grito dele continua ecoando em mim, o pedido não é por um filé mignon. Caviar então, ele certamente nem sabe que existe. O Francisco – e tantos outros – sente falta do "frango e da sardinha". Frango. Sardinha. Quando ele pede "mais merenda", não é porque ele quer bater um pratão... Longe disso. Mais merenda é porque a merenda não está chegando, quiçá o frango e a sardinha... E muitas vezes, como bem lembrado pela bancada do jornal ao final do quadro, essa merenda é a única refeição do dia na vida dos Franciscos desse país.
E se a palavra "merenda" te remeteu a algum político específico sua memória está ótima. A do Francisco, não sabemos. Ele está lidando com a fome, aquela fome que duas pessoas se desafiam lidar por esporte, por hobby, para provar para si mesmos que simplesmente podem... E que muitos não conseguem e desistem, porque não conseguem "pensar direito".
A fome afeta a memória, o raciocínio, o pensamento. E é por isso que muitos Franciscos não tem força para levantar, para correr atrás, para vencer o abismo social, quase intransponível. É por isso que se fala em exceções, não regra. A regra é o Francisco, gritando por frango e sardinha na merenda. O discurso do "quem quer vai lá e faz" espera que nessa pobreza e fome, sem frango e sardinha, se elevem indivíduos com uma força interior descomunal. Espera super-heróis.
Não há como reclamar que o Brasil não tem "modos", não tem a cidadania que o europeu tem, com suas ruas limpas, suas filas respeitadas... O Brasil tem uma multidão de Franciscos que estão muito mais preocupados com o frango e com a sardinha, incapazes de raciocinar o papel no lixo, a ordem da fila. A fome possui um imediatismo que muitos são incapazes de entender e é um problema muito mais sério que um papel no chão.
O clamor do Francisco me levou lágrimas aos olhos, a realidade estapeia e dói. Eu sou humana, eu me compadeço e isso não tem nada a ver com partido, com ideologia, essa tentativa de rotular o compadecimento, a empatia, a humanidade, isso é estúpido para não dizer leviano. Querer que Franciscos tenham frango, sardinha ou até mesmo algo mais que somente isso é parte de mim. Querer que alguém que vive e respira como eu tenha condições de vida digna, para que possa pensa, raciocinar e construir o próprio futuro é o que eu quero.
É por isso que políticas públicas importam. É por isso que o Estado ainda é muito importante nesse país e não pode ser reduzido a ponto de não cuidar de Franciscos. É por Franciscos que luto. É por Franciscos que eu voto. #EleNao
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ENQUANTO O CAFÉ ESFRIA
Short Storypequenos textos ou textões sobre fatos cotidianos, com reflexões do dia a dia.