Num dos seus, cada vez mais raros, momentos de completa lucidez, minha mãe autorizou minha emancipação, me tornando aos 14 anos de idade, legalmente responsável por meus atos. Na época eu não entendi, mas hoje eu sei que ela já estava se preparando para fazer o que fez.
A maior parte das pessoas da minha idade usariam este papel para ir a festas, beber e se matar aos poucos, mas eu o usei para me matricular no colégio secundário, que é o lugar para onde te obrigam a ir quando você termina o ensino fundamental. Haviam dois colégios na minha cidade, um era reativamente perto da minha casa e da minha escola antiga, e o outro ficava no bairro em que ela morava com a avó. Eu me matriculei no segundo para tentar fugir dos meus antigos colegas de escola, mas, mesmo assim, algo me dizia que minha situação no novo colégio sera praticamente a mesma. Eu só não contava com a Olívia.
Eu costumava ir para a escola junto com ela, mas não tinha certeza se a casa da avó dela ficava no caminho para a escola, e como nós não havíamos combinado horários, acabamos nos desencontrando e eu fui sozinha para a escola, quebrando uma tradição que durou 8 anos, o que foi o primeiro sinal de que nós não eramos mais as crianças que nasceram no mesmo dia e que por causa da amizade dos pais se tornaram amigas também.
Chegando lá, a primeira coisa que reparei foi no tamanho daquele colégio, eu estava acostumada com a minha escola que atendia apenas os alunos do meu bairro e não se comparava em nada com aquela escola enorme que atendia metade da cidade, rezei mentalmente para que eu não me perdesse, o que, graças ao eu senso de direção semi desenvolvido, não era muito difícil. Perguntei a um aluno antigo como acharia minha sala e ele respondeu que os alunos eram separados por idade em cada um dos vários prédios, então procurei os alunos da minha idade, e quando encontrei, li todas as listas de alunos fixadas ao lado das salas até encontrar meu nome, quase entrei em desespero quando percebi que não conhecia ninguém daquela classe, mas me controlei e entrei.
Abri um livro e pretendia ler até que a aula começasse, e realmente faria isto se não tivesse ouvido uma voz falando comigo.
Baixei o livro e vi uma garota de pele morena, com os cabelos pretos presos em duas tranças e os olhos azuis brilhantes me observando.
-Me desculpe,-disse meio sem jeito-você disse alguma coisa?
-Eu perguntei,-ela disse sorrindo-se este livro é bom.
-É muito bom.-respondi enquanto ela me olhava quase fixamente.
-Tem quantas páginas?-ela perguntou ainda me fitando.
-Quatrocentas e setenta e oito.-respondi quase me perdendo naqueles olhos azuis.
-Eu nunca teria paciência para ler um livro desse tamanho.-a esta altura eu já sentia meu rosto quente, parecia que ela observava minha alma-Mas talvez um dia eu tenha algum motivo para terminar um.
Não pude responder. Quando ia fazê-lo o professor chegou e ela se virou quase bruscamente, pondo um fim a nossa conversa.
-Aliás,-ela disse ainda olhando para frente-meu nome é Olívia.
Me inclinei para frente, me levantando da cadeira, e respondi:
-Heloísa. Eu sou Heloísa.
Pude ouvir um sorriso antes de voltar ao meu lugar, e não pude evitar sorrir também.
Não me lembro do nome daquele professor, nem da matéria que ele ensinava, mas me lembro daquela aula muito claramente. Nós não conversávamos sobre a matéria, a não ser, é claro, que ensinassem ciência política e eu não me lembre. Todos participavam da conversa, exceto a Olívia que era interrompida, não só pelos alunos, sempre que tentava dizer algo.
Quando soou o intervalo, poderia ter ficado na sala de aula lendo, mas, como sempre, resolvi ir atrás dela, e de fato encontrei, à alguns metros da minha sala conversando, alegremente, com os idiotas que até dois meses antes estavam me espancando pelos corredores da escola. Ao vê-los ali, senti tanta vontade de vomitar que dei meia volta e corri para o banheiro, recebendo alguns olhares que perguntavam claramente se eu estava grávida, e depois de recuperada voltei para a sala, onde me deparei com a Olívia discutindo com uma garota que se afastou ao me ver.
-Você está bem?-perguntei quando a garota saiu e recebi um aceno como resposta-Porque ela estava discutindo com você?-perguntei já sentada na minha carteira.
-Ignorância.-ela respondeu, finalmente olhando para mim-Mas a pergunta é: o que aconteceu com você? Cinco minutos atrás você parecia uma pessoa normal, agora parece que você acabou de levantar do túmulo.
-Eu estou bem.
-Você precisa de um espelho.
Por algum motivo, que ainda não compreendo, confiei nela e contei tudo que aconteceu, falei sobre meu pai, minha mãe, fazendo esforço para não chorar. Ela ouviu tudo, e me contou sobre a mãe dela que vivia na Argentina desde que ela era pequena, e falou também que, provavelmente, teria passado pelo mesmo que eu se o irmão mais velho dela, que estudava no ultimo ano, não fosse lutador semi profissional. Quando perguntei o motivo ela não quis responder.
Acho que não preciso dizer que depois deste dia nos tornamos amigas e inseparáveis.
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Fantasmas do Fim do Mundo
RandomHeloísa viveu boa parte da sua vida em uma cidade pequena com suas próprias regras e costumes, nos quais nunca se encaixou e pelos quais tanto se machucou, mas agora ela está de volta e irá descobrir que os fantasmas de seu passado ainda estão vivos...