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Sinceramente, não sei corrigir-me do vicio das divagações. Há quem defenda e demonstre que o romance filosófico deve ser assim alinhavado a exemplo de Balzac, Sainte-Beuve, Stäel, etc. Na Alemanha então dizem-me que as novelas são tratados de metafísica. Se as minhas derramadas e extraviadas divagações fossem ao menos metafísica! Ser eu, sem dar tino de mim, um escritor subtil, imperceptível, impertinente, medonho e, acima de tudo, sério! Escritor sério! quando se agarra a fama pelas orelhas, e a gente a obriga a dar pregão da nossa seriedade de escritor, a glória vai procurar os nossos livros sérios às estantes dos livreiros, e lá se fica a conversar delicias com as brochuras imóveis, enquanto a traça não dá neles e nela.

O universo, e a humanidade principalmente, ganha muito com os romances sérios: exceptuam-se da humanidade os editores. Um meu amigo publicou seis volumes de novelas de costumes morais a ponto de toda a gente dizer que não havia tais costumes em Portugal. Recebeu muito abraço de umas pessoas que tinham ouvido contar que o meu amigo aconselhava aos filhos a obediência aos pais, aos próximos o mútuo amor e à humanidade o temor de Deus. As seis novelas eram glosas aos dez mandamentos.

Esperava-se a regeneração das velhas virtudes portuguesas, logo que o espírito público se balsamificasse da unção dos seis livros. Volvidos porém uns dois anos, as estatísticas iam delatando em aumento a criminalidade pública. Espanto no meu amigo autor e desanimação melancólica nos editores! Não obstante, a gente grave continuava a dizer que o meu amigo, continuando a escrever por aquele teor e jeito, endireitaria o mundo.

Os editores, porém, observando que o mundo se entortava cada vez mais para eles, recomendaram ao escritor moralista que vendesse a eles romances e a quem quisesse os sermões. Ora, deu-se o caso de que este meu amigo era eu em pessoa.

Apesar dos baixios em que foram a pique os meus livros sérios, teimo em ir neste rumo, discorrendo oportunamente acerca das grandes coisas e dos grandes factos, como se via do anterior capítulo.

Volvendo a concluir as reminiscências que tenho do antigo Afonso de Teive, resta-me juntar que o deixei em Lisboa no ano de 1851, e vim para o Minho, onde me disseram quem era Palmira, falando eu em Afonso de Teive a um cavalheiro de Braga.

Em primeiro lugar, Palmira tinha outro nome na sua terra. Fora educada num convento; saíra do convento para casar com o filho do seu tutor, moço idiota e abominável; e saíra de sua casa para a de Afonso de Teive, o qual por um acaso a vira nos arvoredos do Senhor do Monte, e de se verem à mesma hora em que ambos, embelezados no rumorejar de árvores e fontes, pediam ao Céu, ela o homem e ele a mulher do seu destino, resultou amarem-se tanto loto ali protestaram tacitamente imolar aos deuses infernais o marido idiota-destino misérrimo que não discrimina entre idiotas e atilados. Estas informações saíram-me com o tempo inexactas em muitos acidentes.

Não adiantou mais nada o cavalheiro bracarense; e isto já não era pouco para o meu espanto.

Nessa mesma época ocasionou-se-me conhecer o marido de Teodora, melhorada em Palmira. Andava ele na feira de S. Brás, em Landim, a tantos de Fevereiro, comprando bois e vendendo cevados. Não lhe vi no semblante leve sombra de dissabor, nem osso descarnado. Vi que ele comia à tripa forra um chorumento jantar de carnes frias, em que predominavam as galináceas. A sua direita estava uma mocetona espadaúda, escarlate, alta de peitos e refractária a toda a ideia de amor fino.

Disseram-me que esta moça apreciara devidamente o coração rejeitado por Teodora e assava com perfeição as louras galinhas de que o marido abandonado hauria vigor com que resistia briosamente à sua desgraça. Vi tudo isto, e fiquei satisfeito. A gente folga de ver assim remediadas as enfermidades da natureza. Quando em casos análogos não há vitima nem algoz e as personagens se acomodam na livre prática da liberdade dos cultos, bem que o vicio não deixa de ser vicio, é contudo consolador observarmos que uma certa filosofia é a melhor ortopedia para os aleijões de nascença de que a tona humanidade coxeia à dezanove séculos.

Amor de Salvação (Camilo Castelo Branco)Onde histórias criam vida. Descubra agora