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Eram atrozmente verdadeiras as informações comunicadas pelo desembargador Figueiroa sobre a desfortuna de Afonso de Teive em Paris.

Os quinze mil cruzados, produto suposto da quinta de Ruivães, engoliu-os a voragem do jogo de fundos, à qual o alucinado moço se atirou às cegas, contando com a vicissitude favorável, por ter sido infeliz nas outras.

Resolveu matar-se. Esta deliberação contrabalançou as agonias da pobreza desesperada. Como via a morte no leve movimento de um gatilho, deixou de encarar o futuro. Que lhe importava morrer pobre?! Encheu-se de coragem e deu graças a Deus pela fortaleza que lhe dava. Juntou os objectos de ouro e pedras que reservara para aquela hora premeditada. Chamou o criado e disse-lhe:

- Vende isso que aí está. Creio que o valor dessas coisas bastará ao pagamento do que te devo em dinheiro e soldadas: se algum resto houver a maior, leva-o para te passares à tua terra.

- E o fidalgo onde fica?! - perguntou o Tranqueira.

- Aqui! - disse Afonso.

- Pois também eu, patrão! Já agora, tenha paciência; gastei a mocidade em sua casa; a velhice por cá a levarei nesta endiabrada terra, como Deus for servido. Guarde lá o fidalgo as suas coisas, que eu não as quero, nem lhe pedi nada. Para eu viver, bastame uma carroça e um cavalo estropiado. Arranje V. Exª a sua vida, que eu cá me irei arranjando.

- Cumpre as minhas ordens, Tranqueira! - replicou Afonso com fingida severidade.

- Perdoará, Sr. Afonso... - volveu o criado. - É a primeira vez que lhe desobedeço. Eu não recebo nada enquanto o não vir com outro arranjo de vida.

- Faz o que quiseres... - redarguiu o moço, embolsando a punhados os objectos que oferecera ao criado, na intenção de sair para vendê-los.

Tranqueira desconfiou do intento suicida do amo. Apenas esta suspeita lhe saltou de repente ao ânimo, atravessou-se à porta do quarto, exclamando:

- O fidalgo não é homem, por mais que me digam! Há Deus ou não há Deus?! Então sua mãezinha esteve a criar um menino na lei de Cristo, para V. Exª dar esta saída! Pensa que eu não sei o que lá tem na cabeça? O Sr. Afonso quer dar cabo de si... Pois, ande lá por onde quiser, que eu nem de dia nem de noite o largo mais... Matar-se, por falta de dinheiro, um moço de vinte e cinco anos, que sabe ler e escrever, e em boa saúde! Isso não o faz homem nenhum no seu juízo! Quem precisa, trabalha: se não é nisto, é naquilo. E os que perdem tudo o que têm num fogo, ou no mar, matam-se? Ora, Sr. Afonso, eu dos anos que tenho ainda não topei homem tão desanimado!... Valha-o a alminha da Sr. D. Eulália! Quer o fidalgo uma coisa? Eu vou vender algum desse ouro que aí tem, e vamos para Portugal. Seu tio desembargador mostra que é seu amigo e o Sr. Fernão de Fonte Boa morreu sempre por V. Exª. Não se lhe pede dinheiro nem coisa que o valha: pede-se-lhe que o arranjem em algum emprego limpo. Trabalhar não é vergonha, é honra, fidalgo!... Que me diz? Que responde ao velho Tranqueira que o trouxe ao colo e aqui está de joelhos aos seus pés?

E abraçou-se-lhe aos joelhos, com os olhos inflamados de lágrimas.

Afonso levantou-o nos braços trementes de grata comoção e disse-lhe com transporte:

- Trabalharei, meu amigo, trabalharei... Descansa, que eu não me mato... A desgraça me irá matando..

Com referência àquelas chãs e firmes expressões do servo rústico me disse Afonso:

"Eu tinha lido na véspera daquele dia uns livros de insinuante moral, e consolação a desvalidos, pedindo-lhes crença que me esteasse na desesperada crise de homem, sem nenhum escape na ceifada negridão de sua vida. Doutrinas e exemplos de evangélica unção, factos tormentosíssimos de angústia e admiráveis de conformidade, desde Job até ao maior homem do mundo na rocha de Santa Helena, nada me impressionara, nada me demovera do suicídio. Vi uma réstia de luz instantânea reflectida no rosto de Mafalda! Pensei que era o anjo da santa melancolia a despedir-se do precito, que o repelira. Ainda o apego à existência, exprimindo-se nas frases positivas dela, me quis mostrar a felicidade possível no casamento com minha prima. Afastei com tédio de mim próprio este impudor de alma envilecida pela desgraça. O homem rico não reconhecera a virtude de Mafalda, senão para admirá-la; o homem desvalido havia de ir depois pedir à virtuosa que o aceitasse como marido!... Tive medo que outra vez me acometesse o pensamento vil. Dei-me então pressa em abreviar o termo da luta! Depois disto, como é possível que as rudes palavras de um criado me abalassem desde a profundeza de minhas convicções acerca da coragem do homem que se mata? Como logrou ele o que os livros consoladores não vingaram, nem os estímulos indecorosos a um casamento rico? Foram aquelas palavras: quem preta, trabalha, ditas pelo homem que as tirara da sua consciência, como se elas descessem do Céu, naquele momento, para me serem ditas, não pela página de um livro, mas pela boca de quem as dizia, chorando."

Afonso de Teive, com mais coragem do que a necessária para o suicídio, dirigiu-se a uma casa de comércio de judeus de procedência portuguesa, residentes em Paris.

Conhecera Afonso um mancebo desta família no concurso das pessoas bem qualificadas. Procurou-o e contou-lhe o seu estado, oferecendo-se a trabalhar no escritório, segundo sua aptidão. Os comerciantes aceitaram-no como terceiro-ajudante de guarda-livros com o ordenado de dois mil francos.

Vendeu Afonso as suas jóias e alugou uma mansarda, que mobilou consoante a escolha de Tranqueira, pobre e limpamente. O criado comprou um cavalo, a que ele chamava um milagre, e uma carroça, com que trabalhava de carrejão, nas horas ocupadas do amo. As horas convencionadas, o Tranqueira ia buscar em marmitas um jantar económico para ambos, todavia asseado e abundante. Afonso passava em casa as noites, estudando a língua inglesa para poder adiantar-se na sua carreira, até merecer os seis mil francos de primeiro-adjunto ao guarda-livros.

Se era feliz assim?

Oh! não: nem tudo que é honroso se há-de crer que seja felicidade. A degenerada natureza do homem quadra violentamente com as mudanças assim abruptas, com as quedas de tão alto! O magnificente amante de Palmira, o moço blandiciado nas salas do seu palácio do Campo Grande, reclinado por sobre coxins de seda, inventando regalias com que desanojar a sua ociosa saciedade, certamente não podia escrever odes à fortuna amiga quando saia de escrever cifrões no escritório mercantil. O reportar-se também não é ser feliz; é, no máximo das vezes, um martírio consecutivo de triunfos obscuros; porém, martírio sempre!

E, depois, Afonso entrava futuro dentro, fantasiando mudanças, quimeras, paradoxos, que o volvessem a uma felicidade, que ele bem nem mal sabia definir, ou estremar do que vulgarmente se diz que ela e. Destas vãs e ardentes consultas ao porvir voltava o moço ao refrigério do trabalho, e assim o tempo ia derivando, branqueandolhe os cabelos e quebrando-lhe os espíritos.

Em Lisboa era sabida a situação de Afonso de Teive, não que ele a contasse.

Escrevia ao tio Fernão raramente, sem de leve tocar em negócios. Respondia às cartas. de algum raro amigo que o julgava ainda em circunstâncias de lhe não pedir empréstimo para se resgatar de Clichy.

Neste tempo recebeu ele novas de Palmira, não solicitadas. Dava-lhas assim um dos seus comensais de Lisboa:

[...] A mulher surgiu aqui, vinda não sei de onde, pompeando com tanto esplendor e mais estupidez que no teu tempo, ou. melhor direi, no teu reinado.

Vi-a em São Carlos, ontem, sozinha na frisa. Disseram-me, porém, que lá, no recôncavo do camarote, estava um homem gordo, de tez bronzeada e vista de suíno.

Dizem que é brasileiro do Minho, outros diziam que o marido envergonhado. O D. José de Noronha, desde o banho da cisterna, nunca mais se endireitou do espinhaço, e vai a tísico irremissivelmente. Não há memória de uma catástrofe assim nos fastos dos Lovelaces patifes deste nosso quintal do tio Lopes. O D. António de Mascarenhas assevera-me que Palmira nunca mais teve uma palavra de consolação para o derreadoamante, O teu criado matou estes amores com tamanha ignomínia, que já não há ninguém que queira amar mulher em casa onde haja cisterna.. - Irei dizendo o que

souber da Laïs minhota [...].

Afonso leu glacialmente a carta e não respondeu ao noticiador.

- Que sentimento fez em ti essa nova? - perguntei eu.

Afonso encolheu os ombros e disse:

- O sentimento da piedade. Não podia ser amor, porque não há infâmia de alma que desça até aí. Odio também não, que o ódio quer vingança, e eu dava-me já por vingado da mulher a resvalar, no plano inclinado, não sei até que ordem de abismos. Era piedade que eu sentia, e tanta que, se me viessem dizer que Palmira, dentro de um ano, perdera a formosura, que vendia, e os bens, que herdara, e se desgraçara até à extremidade de pedir o pão de cada dia, eu faria do meu pão dois quinhões, e um mandar-lho-ia sem insulto nem palavra recordadora do passado.

Esta foi a resposta de Afonso de Teive. Eu acreditei, porque tinha visto o mundo, e

não há nada que não acredite.

Amor de Salvação (Camilo Castelo Branco)Onde histórias criam vida. Descubra agora