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Volvido um mês sobre os sucessos descritos, Afonso de Teive e Palmira – que nunca mais se chamou Teodora - viviam num palacete ao Campo Grande, por ser entrada a sazão estiva.

O interior esplêndido da casa sobreexcedia o exterior majestoso. Nas cavalariças escarvavam, arrifavam e relinchavam os cavalos de trem e de passeio. No pátio, os lacaios limpavam e bruniam os arreios e as equipagens. Sentia-se o respirar da felicidade, como escondida das invejas do mundo, naquele magnífico aposento. O dono dela gozava-se da fama de opulento fidalgo do Minho; porém, o tesouro que a pública admiração mais lhe encarecia era Palmira.

Frequentavam a casa de Afonso de Teive alguns dos amigos que D. José de Noronha lhe dera, moços da primeira fidalguia. Ao verem a mulher por quem Afonso desprezava todas, acharam e disseram, sem lisonja, que ele tinha sofrido e amado pouco. A expectativa de D. José fora surpreendida pelo excedente de uma formosura, graças a talento não imaginados. Estes gabos, porém, proferidos a medo na presença dela, eram tão respeitosos e aferidos no padrão do melindre palaciano que Afonso de Teive nem por

sonhos aventou a possibilidade de uma intenção desleal do amigo.

Palmira, por sua parte, quando os seus hóspedes e convivas, no mais aceso dos brindes em lautos banquetes, lhe balanceavam o incensório dos louvores, baixava os olhos, inclinava a cabeça e mostrava aceitar resignada o incenso, em obséquio aos turibulários. Era aquela a atmosfera inebriante dos anelos da morgada da Fervença.

Lembranças de sua vida conjugal em Tibães afastava-as com repulsão.

A imagem de Eleutério fazia-lhe vergonha de si mesma. Tornou-se desnecessária a leitura ao recreio das suas noites. Preferia, à falta de teatros, passear a cavalo ao clarão da Lua, ladeada de Afonso e de D. José de Noronha, a mais intima e feliz testemunha dos prazeres de Afonso. Tinham noitadas de estenderem a Sintra os seus passeios, ora serenos e contemplativos, ora em correria vertiginosa, à vontade e capricho de Palmira, cujo cavalo negro ela denominara...

- Eleutério?! - perguntei eu, cuidando que adivinhara, quando o meu amigo chegou a esta altura da história.

- Não, nem tanto... -respondeu Afonso.- Chamava-lhe Lúcifer - Que desprezo do monarca do Inferno! Parece-me que Palmira não tinha virtudes para zombar assim da personagem que provavelmente lhe há-de pedir eternas contas da nomenclatura do quadrúpede!

Vamos rio prosseguimento desta celestial felicidade, em que o Inferno apenas lembrava em virtude do nome do cavalo.

No termo de um ano, Afonso de Teive tinha escrito, a largos prazos, pouquíssimas canas a sua mãe. Noutro relanço viria mais bem cabido o falar-se da virtuosa senhora e da angelical Mafalda; A promiscuidade faz-me susto de vituperá-las. Mas é preciso dizer que D. Eulália, em cumprimento da sua promessa, remetia ao filho as quantias avultosas que ele exigia, e o produto de uma quinta de sua legítima paterna, logo que Afonso lho determinou. Fernão de Teive comprara a quinta clandestinamente por intervenção do seu mordomo. O ouro entrava em torrentes naquela voragem, de onde retornava em carruagens, em baixelas, em festins, em sedas e brilhantes, em apostas soberbas no jogo, em extravagâncias de soada fama, em empréstimos aos comensais.

No decurso dos doze meses, apenas Fernão de Teive mandou um triste memento homo ao reboliço daqueles júbilos. Eram estas palavras unicamente:.

Lembra-te, Afonso, de teu tio-avó Cristóvão de Teive.

Afonso sorriu e perguntou a Palmira se lhe via sinais de lepra. A jovial criatura, informada da intencional alusão, cascalhou umas risadas de que muito se compraziam os ouvidos do amante, as quais, no dizer de D. José de Noronha, tinham uma alegria contagiosa, que faziam bem aos infelizes. Afonso não respondeu ao velho de Fonte Boa;

Amor de Salvação (Camilo Castelo Branco)Onde histórias criam vida. Descubra agora