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No oitavo dia de residência em Paris, Afonso de Teive não sabia que fazer da sua pesada inércia. Fechado no quarto de um hotel, ouvia os estrondos da Babilónia e suspirava pelos silêncios da sua aldeia. Apresentara as cartas de cavalheiros de Lisboa na Embaixada portuguesa, recebera a visita dos compatriotas distintos em Paris e convivera nos primeiros dias em bailes, teatros e jantares. Saciou-se prestes aquela contrafeita sofreguidão de vida, e logo uma súbita e glacial atonia lhe enegreceu os prazeres almejados de longe, como iniciação para outros que inteiramente lhe obliterassem da memória as dores passadas.

E, no termo de oito dias, uma consolação única lhe restava: era o antegosto de voltar à casa deserta de Ruivães e esperar ali ao lado do jazigo de seus pais o breve termo de sua irremediável tristeza.

Afonso, porém, tinha vinte e quatro anos. A natureza contramina estas renunciações imtempestivas. Uns repentes impensados sacodem a alma de sua modorra e a sobreexcitam a desejos vagos, bem que efémeros. A matéria não é um impassível envoltório de corações entorpecidos. E preciso que a vida sensitiva se amorteça antes da actividade moral para que as paixões malogradas vinguem o total quebranto do homem.

Entrou Afonso na sociedade, levado pela mão da esperança, que prometia guiá-lo ao pé da mulher salvadora. Mal encaminhado ia aos salões de Paris. Os conhecedores daquele "mundo" contaram-lhe as histórias de cada mulher que tinha ares de poder salvar alguém; no geral eram criaturas que procuravam quem as salvasse das incertezas do futuro pelo casamento justificado e santificado com algumas centenas de milhares de francos. Estas eram as filhas dos generais do império, as filhas dos estadistas em começo

de fortuna, as filhas dos gentis-homens cujos apelidos contavam sua antiguidade de Carlos Magno para além. E todas estas meninas, esperançadas em salvação e em requesta de salvadores, quando encaravam no vulto melancólico de Afonso de Teive, imaginavam-no um galante moço que, ao contemplá-las, dizia magoadamente entre si: "Se eu fosse rico!..." Elas, olhando-o de soslaio com discreta reserva, diziam: "Se tu fosses rico!..."

Quando Afonso tomou a peito rectificar este juízo dos seus amigos, avizinhou-se das mais aureoladas do azul-celeste da inocência e averiguou que as mais singelas à vista eram as que menos a ponto falavam, em termos rigorosamente aritméticos, de fortunas deslumbrantes, de casamentos projectados. E se ele, com a portuguesa e bendita poesia dos nossos amores de sala, aventurava algumas frases de idílio sobreposse, as ligeiríssimas criaturas ouviam-no distraídas, como, no teatro, ouviriam música de Donizetti, e encheriam de melodias a alma, enquanto assestavam o binóculo no filho do banqueiro.

Compreendeu logo Afonso de Teive que não servia à alta sociedade parisiense.

Um forasteiro que vai a Paris com trinta mil cruzados e deixa na Pátria uma quinta que valeria menos de metade daquela quantia improdutiva deve contar que no caminho do hotel aos teatros e salas, aos festins e concertos, em menos de dois anos, com alguma parcimónia nas despesas, se lhe hão-de escoar as últimas mealhas. Os haveres de Afonso, postos à disposição da filha do marechal do império ou do marques decaído com os Bourbons, dariam uma dezena de toilettes da esposa. Esta dura verdade caloulhe no ânimo, afastando-o do concurso de mancebos que malbaratavam cada mês fortunas sobre-excedente à dele. Penoso desengano às portas do grande mundo onde ele tencionara retemperar o coração ao bafejo das primeiras mulheres da época e da França.

Tinha, portanto, que descer às inferiores camadas, abaixo mesmo da média. Nesta Mais difícil lhe seria o escolher um rosto distinto e uma alma no estado da inocência do anjo; trancava-lhe as portas a cobiça que lá vai dentro, incitando-as a elevarem-se até emparelharem com as invejadas mulheres da classe alta. Ele, cuja razão se alumiara à luz do facho do universo, à luz de Paris, viu-se qual era, correu-se da sua comparativa pobreza e refugiu dos bailes, das ceias e dos concursos em que o seu pecúlio se ia desnervando à custa de sangrias inevitáveis.

Amor de Salvação (Camilo Castelo Branco)Onde histórias criam vida. Descubra agora