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Cerravam-se cada dia mais espessas as trevas em volta do perplexo ânimo de Afonso de Teive. A obsessão de Teodora não lhe dava tréguas. Nas circunvizinhanças de Ruivães já se fazia reparada a amazona, umas vezes sozinha, outras seguida do lacaio, e algumas vezes ao lado do marido, a quem ela não prestava mais atenção que ao lacaio. Afonso, enquanto a mim, resistindo à tentação, iniciava-se para consorciar-se no reino celestial com os santos da sua família, monos sob o estandarte da cruz; mas, a juizo de muita gente, muito menos beneméritos da auréola da santidade. Morrer com o céu a abrir-se além no horizonte, ouvindo já os hinos dos anjos, é glorioso e exultante; porém, morrer gotejando em lágrimas o sangue do coração, sem visões bemaventuradas, sem estímulo de predestinado, morrer do amor de uma mulher que se arrasta submissa aos pés do triunfador que a despreza e adora... sublime extravagância, se querem que lhe eu não chame santíssimo martírio!

A mãe do lastimável moço, antes de avisada da intentada partida dele, resolveu impor-lhe o seu arbítrio de mãe com severidade. Informada por Fernão de Teive, sabia que Teodora fazia miúdas investidas às redondezas de Ruivães e que Afonso não era estranho, bem que a não houvesse encontrado, aos planos da impudente mulher.

A palavra "adultério", no espírito de D. Eulália, tinha uma significação de horror, como se o crime não tivesse exemplo na humanidade, nem remorso que o contrapesasse na balança da misericórdia divina. O pavor de que um filho seu, um descendente de santos, e pelo menos honrados varões, pudesse dar ao mundo o escândalo de tamanha perversidade, acendeu-a em louvável indignação. Inesperadamente, é chamado Afonso ao quarto de sua mãe para ouvir estas pesadas e secas palavras:

- Eu preciso de morrer em paz com todo o mundo, que nunca escandalizei, penso eu, e Deus me perdoe se a minha vaidade me faz esquecer as culpas. Enquanto viva, peço-te como amiga, se não devo antes ordenar-te como mãe, que me poupes à vergonha de esconder a face quando me pedirem contas dos sentimentos de religião e honra que te insinuei na alma. Temo que me perguntem que fiz eu da herança, que teu pai fiou de mim para te eu ir entregando, assim que tivesses razão para recebê-la...

herança de virtude e probidade que tu levas em princípio de desbarate. Mando-te que te retires para longe desta terra. Vai para Lisboa, se te agrada; ou vai viajar, se antes queres. E bom que saibas os cabedais que tens. A tua casa rende seis mil cruzados: conta com eles, e com o valor das propriedades, se, para salvação de tua honra, precisares que elas se vendam. Não voltes para mim sem me poderes jurar pelas cinzas de teu pai que a lembrança pecaminosa de Teodora morreu em teu coração, Deus Nosso Senhor te abençoe, filho. A minha última oração será rogar ao Criador que te restitua à casa onde as gerações legaram umas às outras a tradição de grandes serviços a Deus ligados a grandes serviços à Pátria: religião, honra e trabalho, o nobre trabalho da espada de uns, e da ciência de outros. Tu sais da trilha de teus avós, consumindo tua mocidade

em dissabores de que ninguém, senão eu, pode compadecer-se. Vai. Se puderes, sê forte, sé homem. Se a última fraqueza te levar ao último crime, guarda ao menos uma parte da alma para a contrição no remate da vida.

Nunca, até àquela hora, Afonso vira e ouvira assim sua mãe. Mesmo na admoestação, denotara sempre o pesar com que o fazia; e para o compensar da mágoa, acudia logo com as caricias.

Por causa de Teodora, as repreensões eram sempre disfarçadas na grave mas doce persuasão do conselho. Querer afastá-lo de si, nem por sombra de palavra o indicara nunca. E agora, no semblante; na rigidez da frase, na postura do rosto e arrugado da

testa, Afonso achou tanta mudança para espantar-se como afligir-se, Ia ele responder, e ela, para logo, de um gesto de silêncio, o fez calar, dizendo:

- Não te quero ouvir: Deus que te ouça; vai. Cá fico eu velando os dias desta menina, mas que teve a desventura de te amar. Consolar-nos-emos eu e ela, orando por ti. Amanhã partirás. Tua mãe ordena. Afonso, ao despedir-se de sua mãe, teve a intuição de que a não veria mais. A maior agonia da sua vida, até àquele momento, foi essa.

Ajoelhou-se a beijar-lhe as mãos, que molhou de lágrimas. E ela abençoou-o serenamente, com os olhos no crucifixo do seu oratório. Ao lado deles estava Mafalda, lívida, hirta, transida de um frio que a fazia tiritar. Não chorava. Podia comparar-se a sua atribulação à da mãe que também tinha enxutos os olhos. Porém, quando Afonso lhe estendeu a mão, e disse: "Adeus!", ela arrancou do intimo um cortante grito e lançou-se nos braços dele, debulhada em pranto.

Amor de Salvação (Camilo Castelo Branco)Onde histórias criam vida. Descubra agora