Conclusão

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Entreluzia a manhã pelos resquícios e fendas das janelas do nosso quarto na estalagem da Sr. Joaninha de Guimarães.

Afonso de Teive disse:

- E dia: vou concluir

- Não é necessário - atalhei -, o restante sei eu –Mas não me prives por isso de ser eu o narrador da minha bem-aventurança.

Aquela mulher que eu te apresentei, negligentemente vestida, e amarrotada dos braços dos seus oito filhos, é minha prima Mafalda, a esposa da minha alma, a salvadora do meu coração, os olhos que me vêem pelos da minha mãe, a consciência da minha consciência, a retentora das minhas alegrias infantis, a mãe dos meus oito anjos, que minha santa mãe me enviou do Céu.

"Há dez anos que vejo amanhecer os meus dias como as aves, cantando o Senhor,

e adorando-o como os cenobitas.

"Minha mulher, ao abrir-me os tesouros da sua alma, revelou-me também os tesouros da fé, as delícias da religião e a taça inexaurível dos sabores da caridade.

"Mafalda desaparece-me às vezes com os filhos mais velhos: eu vou procurá-la fora de casa com os mais novos nos braços, e descubro a piedosa valedora no cardenho de algum jornaleiro, à cabeceira das palhas nuas do enfermo, ao qual ela foi levar a cobertura e o alimento. Outras vezes são os meus filhos que levam o seu fatinho velho às crianças que estalejam de frio sobre o lajedo de uma cozinha sem lume.

"Se alguma hora falei como marido austero a minha mulher, a doce criatura respondeu-me com um sorriso; os meus queixumes são sempre causados pela pertinácia de ela entender no governo da casa com zelo convizinho da mortificação - Mafalda é rica; mas tem uma máxima indestrutível: "poupar para os pobres".

"Há dez anos que vivo em Ruivães. Neste longo espaço, apenas tenho acompanhado minha mulher a observar a cultura das suas quintas, que ela teima em chamar minhas. Mafalda tem vagas ideias do que é um baile, e eu pude esquecer as ideias que tinha. Dizem que a convivência de anos entre esposos, que muito se amam, traz consigo de seu natural uns silêncios significativos do esfriamento das almas. Eu não sei o que seja esse arrefecer. O Céu e a Terra estão continuamente abertos ante meus olhos; de cada vez que os contemplo, a cada alvorecer, e fim da tarde, os maravilhosos poemas dão-me sempre a ter uma página nova, e Mafalda traduz mais pronta que eu os hieroglíficos da Divindade. Falamos de Deus e dos filhos, contemplamos o boi que nos encara soberbo, a avezinha gemente que pipila, a fonte que suspira e a catadupa do ribeiro que ruge. A natureza é a terceira voz dos nossos colóquios, umas vezes amor, outras vezes ciência, e sempre admiração e perfumes ao Eterno, que nos encheu de delícias e enflorou o caminho da velhice.

"Ecos do mundo nenhum chega ao nosso ermo. A mim, os homens que me viram consideram-me morto uns, outros porventura me lastimam embrutecido entre os meus fraguedos. Tive cartas a que não respondi; fui procurado por ociosos, a quem recebi na minha sala de visitas, com uma cerimónia que os afugentou. Afligiam-me as testemunhas do meu vilipêndio e temia que elas proferissem um nome que soaria como blasfémia no santuário de minha família.

"Aspei todos os vestígios que pudessem recordar Teodora. Entre os papéis de meu tio Fernão, numa gaveta secreta, encontrei o copiador das cartas dela. Minha mulher surpreendeu-me neste descobrimento, viu e compreendeu, sorriu-se e disse: "Meu pai nunca me deixou ver isto, bem que eu soubesse da existência deste livro - Triste sorte a desta senhora!, mal diria a mãe que tão virtuosamente a educou!" Únicas palavras que Mafalda proferiu com referência a Palmira!

"Aqui tens a minha vida, a vida dos dois homens que na curta passagem de quarenta anos tocaram as duas extremas do infortúnio pela desonra e da felicidade pela virtude. Uma mulher me perdeu; outra mulher me salvou. A salvadora está ali naquele ermo, glorificando a herança que minha mãe lhe legou: o anjo desceu a tomar o lugar da santa: a um tempo se abriu o Céu à padecente que subiu e à redentora que baixou no raio da glória dela. A mulher de perdição não sei que destino teve."

Amor de Salvação (Camilo Castelo Branco)Onde histórias criam vida. Descubra agora