Capítulo 3

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Era cedo. O vento estava gelado. E eu não podia mentir, queria voltar para a cama e ficar ali por cinco míseros minutos que fossem. Mas, é claro que estava ali, nunca havia sido como as outras meninas de minha idade. Sempre fui assim, madura e à frente do meu tempo. Sempre ajudei meus pais e vim trabalhar cedo mesmo que o sono me fizesse querer voltar para casa. Apesar da cultura do lugar onde vivo, acredito que as garotas podem sim lutar pelos seus sonhos. Diferente do que muitos daqueles velhos amigos do meu pai dizem, mulheres podem com facilidade fazer as mesmas coisas nas quais eles enchiam o peito para dizer que eram insubstituíveis. Minha mãe era um exemplo vivo disso, e era minha inspiração. Talvez ela nem soubesse, mas sim, ser como ela era tudo o que eu sempre quis.

Eu sempre me segurei ao agora e nunca perdi muito tempo pensando no futuro e suas possibilidades. De tudo o que meus pais pais possuíam, a única coisa em que eu nunca pensei ou desejei era exatamente a companhia. Nunca pensei no dia em que encontraria alguém por quem eu lutaria para ter por perto. Era nova para essas coisas, e levando em consideração o auge dos meus dezoito anos de vida, só tinha que pensar em continuar ajudando em casa. Morava no meio do nada, sabia que existia um mundo imenso longe dali, já ouvira falar sobre ele, mas não sabia se um dia poderia alcançá-lo, então tinha que dar o meu melhor pelo pequeno mundo isolado no qual vivia.

Já ouvi falar sobre pessoas não tão mais velhas do que eu lutando pelos seus direitos, gritando pelas ruas das grandes cidades sobre o que achavam certo ou não e achava aquilo incrível, o poder de dizer o que queria fazer por se sentir bem e não por ter obrigações. Era como se entre mim e esses jovens houvesse um abismo. Como se no grande mundo desconhecido, eles conseguissem ver as coisas com outros olhos e pudessem dar a sua opinião sem ser considerados birutas ou desobedientes. Aqui, por outro lado, a década de sessenta parecia não ter chegado. O mundo parecia não girar. E as pessoas próximas a mim estavam paradas no tempo e se conformavam com isso.

Eu não.

— Judite? — Alguém me chamou — O que essa menina tem hoje, Maria? — Minha mãe e eu trabalhávamos numa casa de farinha de uma grande fazenda com um grupo de mulheres. Estávamos descascando mandioca quando ouvi uma das mulheres ao meu redor chamar a minha atenção me acordando dos meus devaneios.

— Tenho nada não, só tava pensando na vida.

— Então pensa e trabalha que a vida não tá fácil pra ninguém.

Me controlei respirando fundo, porque era quase crime retrucar alguém mais velho. Talvez fosse pecado, a maioria das coisas eram.

— Deixa a menina em paz, Constância! — Minha mãe me defendeu e sorriu para mim antes de abaixar os olhos outra vez.

— Vocês também não aguentam uma bronquinha de nada que já vão logo se alvoroçando. Me poupe.

Constância era a mais velha do grupo e vivia implicando com a maneira com que todo mundo fazia qualquer coisa que fosse, até mesmo a forma como alguém tinha amarrado o lenço no cabelo. De certa forma eu já tinha me acostumando com a moribunda, então ficava mais fácil de conviver.

— E como vai o trabalho aí, minha gente? — A voz masculina ecoou e ao erguer os olhos encontrei seu Flávio. Ele era o dono da fazenda onde eu trabalhava, mas era legal demais para ser chamado de chefe.

— Tudo bem por aqui, compadre Flávio. — Alguém respondeu com alegria lá do fundo.

— Graças a Deus... O rapaz hora dessas já há de ter chegado, daqui a pouco deve tá dando as caras.

O assunto do momento era que uma família estava vindo da cidade grande para morar numa fazenda ali das redondezas, apesar de ser difícil imaginar o motivo pelo qual alguém quisesse se dispor a morar ali. Mas, pelo visto a fofoca se perdera no meio do caminho.

Inconstante e BorboletaOnde histórias criam vida. Descubra agora