O Bicho

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O Bicho sentia tonturas desde que fora ali atirado. Era remessa das grandes, uns vinte e pouco mais libertos. Questão de economia dos Polícia que não gostavam de esbanjar recursos levando pouca-merda p'ras Zonas Livres. O Bicho era o único que ainda resistia vivo depois de uma semana. Mentira das grandes, coisa pra jornal, teatro de função estabilizadora dizer p'ra gente de bem que o Estado era justo e que as leis continuavam a ser respeitadas, cumpridas. Coisa que ninguém discutia. E por ventura algum insano ou com sinais de heresia aparecesse, argumento não faltava ao povo de bem. "Se o governo fosse ruim ou malvado, acha mesmo que cumpririam os alváras de soltura?" era sempre a resposta certa para as perguntas erradas, ainda que praticamente ninguém as fizesse. Quem poderia alegar em contrário se as penas impostas pelo Estado eram cumpridas em todas suas exigências. Quem tivesse que ser fuzilado, que o fosse, quem tivesse que voltar à liberdade, que voltasse.

"Hoje a benevolência do Estado é demonstrada ao darmos e permitimos a estes meliantes, infratores e marginais, terem suas segundas chances. Quem aprendeu algo, quem mudou de verdade, vai poder provar agora, começando de novo em nossas Zonas Livres..." Discurso introdutório feito há anos pelo presidente em toda cerimônia de soltura.

Até mesmo o Bicho ouvira aquela ladaia. Mas todos os vinte e poucos, bem como os que vieram antes deles, os que vieram antes deles, os que vieram antes deles... tinham sempre o mesmo destino, coisa que ninguém se preocupava fora das Zonas Livres. Duravam pouco, diversão p'ra turma das Comunidades começava tão logo o comboio das autoridades dava volta e meia deixando ali carne nova à mercê do Movimento. Raros eram incorporados, geralmente o Chefe mandava matar tudo, fragmentar, distribuir um pouco entre os seus e as partes nobres iam direto para...

Além disso, tinha a lista... O Bicho tinha quase certeza que estaria nela. O que significava que a ele nem mesmo a reciclagem seria destino. Dos da Lista, picoteavam, queimavam e enterravam fundo, tinha ouvido falar.

Não pagaria pra ver. De jeito nenhum. O Bicho tinha que sobreviver, coisa difícil de se fazer, é bem verdade.

Só tinha chance se escapasse das primeiras horas. Mas os tiros tinham começado nem três minutos depois da desova. Os Vinte e Poucos, apavorados, amedontrados, corriam como baratas detetizadas. Baratas de calças laranjas e torsos desnudos. Alvos fáceis, e mesmo que livrassem-se das roupas-de-cadeia, os gigantescos códigos de barras impressos às costas denunciavam de onde vinham.

Ou seja.

Ninguém lhes daria abrigo.

Qualquer um poderia tentar matá-los. Era sempre bom uma ou outra recompensa do Chefe.

E também estavam tão ou mais fracos que os famintos das Zonas Livres. Estado eficiente controla suas penas, sabe quando liberdade chega, o que significa que sabe exatamente quando dobrar, triplicar os trabalhos forçados na prisão...

O Bicho, mesmo. Fora enviado nos últimos três meses com um grupo para a rara zona de floresta densa. Dezesseis horas diárias de trabalho, e três porções de ração por dia. "E lambam os beiços seus marginais. Mês que vem vai ser metade dessa ração, o Governo até que enfim percebeu que não dá pra ficar gastando desse jeito com vagabundo" gritava o carcereiro da cantina a cada refeição.

O Bicho nem sabe como voltou de lá. Também nunca conseguiu descobrir quantas árvores tinha derrubado e descascado naquele período. "Pelo menos agora esses filhos da puta pagam pelo que fizeram." O bicho ouvia dos de uniforme. "Agora sim somos uma nação rica e próspera" os guardas costumavam deixar escapar quando pensavam que dormia. O Bicho sentia vontade de vomitar com papo de guarda. Tinha ouvido muito disso, desde que nascera, é verdade.

A lei dizia que aos sete anos os meliantes tinham que ser informados de suas penas no caso de crimes por probabilidade hereditária. Era por questão de equilíbrio judiciário, pois embora a maioridade penal continuasse aos sete anos, diante da chiadeira do Congresso para que se reduzisse p'ra três, os crimes por probabilidade hereditária eram uma execção constitucional. Foi o que lhe explicou o juiz numa audiência confirmatória quando o Bicho fez sete anos. Contou também dos crimes que o pai do Bicho tinha cometido e também do pai do pai dele. "Estatisticamente, meu jovem, você indubitavelmente cometeria crimes, e se posto em liberdade, possivelmente cometê-los-á". O Bicho que na época era convocado pelo vocativo Prisioneiro 2057-1.0075/40 (número grafado em seu código de barras), não entendia nada do que falava o homem gordo de feições entojadas que olhava-o de cima para baixo.

Por alto a síntese era mais ou menos a seguinte: os progenitores do Bicho eram criminosos, bandidos de alto grau, coisa a ver com subversivo, moral, traições, assaltos, "coisa pesada" rematava o juiz. "A estatísca é das ciências, uma das mais belas, meu jovem. Nosso país conviveu por anos com o medo provocado pela insegurança, pela frouxidão do Estado com meliantes e marginais, e nem fodendo que voltaremos a estes tempos negros em que um cidadão de bem não pudesse andar em seu carro sem o risco de ser assaltado, que uma família de bem não pudesse ir à praia sem...." a cara do gordão pareceu desolar-se "melhor, nem lembrar".

Foi nessa audiência em uma sala do tribunal que aos sete anos o Bicho enfim ouvira sua sentença, punição que já cumpria desde a maternidade (a mãe fora fuzilada por formação de quadrilha ao deitar-se com o pai do Bicho). "(...) dito isto, Prisioneiro Dois Zero Cinco Sete Traço Um Ponto Zero-Zero Sete Cinco Barra Quarenta, ao tendo o senhor completado a referida maioridade penal conforme a Constituição Nacional e Patriota da República Cristã Soberana do Brasil, e de acordo com os pareceres do Ministério Público Cidadão, das Congregações Envangélicas Cristãs quem amparam o Estado nas questões de natureza espiritual, e da Ordem Jurídica Federal, favoráveis a manutenção da sentença provisória e amparados em laudos oficiais de probabilidade estatística de praticar crimes contra as Leis do Estado em razão de probabilidade hereditária, vos sentencio a pena de reclusão de vinte e seis anos e oito meses de cárcere pleno e sem qualquer possibilidade de anistia ou reversão de pena, sendo o senhor, ademais notificado que deverá restituir os custos do Estado por suas práticas criminosas por meio de vosso trabalho conforme ordens e direção da Penitenciária..."

Desde então, toda noite quanto fosse possível ressonar o Bicho em sonhos lembrava-se das palavras do juiz. Da cara de nojo do homem ao proferi-las, das feições satisfeitas de guardas e promotores.

Naquele dia maldito, soubesse o Bicho dos significados daquelas palavras, teria se matado, porém, antes disso, conheceu O Fantasma.

DOIS.ZERO.OITO.QU4TROWhere stories live. Discover now