O Fantasma

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Tinham uns anos passados da sentença do juiz quando o Bicho, que n'aquela época 'inda não era Bicho, quando conheceu tal Fantasma. Tinham levado o moleque p'ra uma dessas minas de nióbio, trabalho grande debaixo da terra. Como ração era pouca, só p'ra não deixar morrer, num daqueles túneis o rapazote arriou as pernas. Bumf. Fez o seco barulho quando os ossos com pele caíram no chão.

"Dêxa de molengagem muleque." Gritou logo um dos carcereiros. Pra função só tinha gente tinhosa, barriga cheia, e vontade muita de usar o porrete. Os mais temidos iam direto p'ra kalashinikov. "Se vagabundo não dá bom exemplo, não se correge" Dizia um outro lá com jeito de velho no serviço.

"Já está de pé." Gritou o homem.

Estava nada. A figura estranha é que tinha erguido peso quase morto do guri e posto de pé. "Acorda rapaz... acorda" o homem dizia baixinho porque guarda de prisão era burro, mas nem tanto, e logo perceberiam o engodo. Tinha três dedos e meio na garrafinha de água pra durar o dia lá embaixo, e ainda que estivesse na metade da jornada, o homem atirou o conteúdo na cara do garoto.

Foi assim que se deu o conhecimento dos dois.

O homem não tinha nome, é claro, ninguém que devesse para a justiça o tinha. Mas tampouco o homem tinha número ou qualquer outra coisa que o identificasse que não o código genético e o rastreador que todo preso tinha implantado na aorta. Por isso era fantasma, jogado ali por uma série de matemática que impedia o regime de matá-lo, afinal, gente esperta e das crenças bem sabe como surgem os mártires.

Nem mesmo o homem talvez soubesse quanto tempo cumpria pena. Na verdade nem pena ele cumpria, se do que lembra já não é mais mentira da cabeça, as forças do Governo o acharam no meio dum grande mato. Ele fugia sim, mas também resistia, pelo menos disso se lembra. Tinha já nascido com as coisas bem ruins por aquela terra, durante o processo. Quando havia ainda algum embate ou antagonismo. Tinha crescido por guetos, subúrbios perdidos e matos, enquanto seus pais lutavam contra o novo regime. Naquela época ainda, pelo que se lembrava, nem todo mundo tinha também se convertido, ou pelo menos fingido tanto. Mas a totalização do país numa coisa só, não demoraria, sabia, ainda que lutasse. Então lutou enquanto deu, até homenzinho tinha virado. Tempo pra ter visto muita coisa ruim também.

O que não sabia dizer é que se fugia ou se preparava algum contraataque no meio do mato. Nunca tinha visto tanto drone, polícia, milico e dróide juntos. Tinha certeza que sua captura seria o maior evento noticioso do jornal das tardinhas. Ia ser tanta aleluia e glórias que se o tal Cristo existisse mesmo, não ficaria surdo à catarse que provocaria sua prisão.

Mas nada aconteceu.

Não houve notícias. Nem mesmo lhe julgaram. Nenhuma audiência, nada de fotografias. Simplesmente foi jogado numa sala escura. Depois vieram as as cirurgias, as modificações e o périplo de prisão em prisão. Tinha muitos anos que não existia. Isolado e com medo de tudo e todos que lhe punham próximos. Pouco falava, e tão bem como chegava num lugar, era levado para outro.

Mas se tem coisa que gente de cadeia é, é esperta. Mesmo mortos de fome, fadigados, enlouquecidos e abandonados, gente é coisa teimosa, que guenta trancos dos bem piores, e teimam em existir. Não demorou tanto tempo que se possa pensar para começar os susssurros por corredores e campos de trabalho sobre o tal Fantasma.

Disso nada sabia o Bicho quando voltou assim engolfando aquele punhadinho de água e tossindo feito leproso.

"Shhhhhiiu. Não fala nada, garoto. Tenta ficar de pé." O homem disse com certos ares paternais. Não era muito comum da parte dele, já tinha visto um bocado de crianças pelos campos de trabalho por quais passara. Mas ali, naquele túnel, tentar salvar o moleque lhe queimou o peito como se fosse uma ordem e uma verificação de que os demônios não tinham-lhe tirado todas as almas.

"Que putaria é essa aí... trabalho... trabalho..." e os tazeres chiaram produzindo ondas iluminadas de um azul maldoso pelas galerias labirintitícas. Outra coisa que carcereiro gosta é do treco que dá choque.

"Sabe por que carcereiros são pessoas, e não robôs, garoto?"

O Bicho só grunhiu um cadinho.

"Robôs não são sádicos..." o Fantasma balbuciou e estimulou o rapaz a voltar ao trabalho.

E foi assim que naqueles três dias o Bicho que 'inda não era Bicho e o Fantasma fizeram amizade. Aos sussurros e a contragosto do homem, que sabia que interações mais longas na cadeia significavam um bocado de sessões doloridas de castigo. Quando não "o mal era cortado pela raiz".

"Não consegue ficar com essa boca fechada moleque" recriminava o Fantasma toda vez que o Bicho puxava assunto. Até mesmo passou a evitá-lo, mas sem muito sucesso. Além disso, as coisas mudaram quando o Bicho contou-lhe das lembranças, quase já sonho da audiência com o juiz, das palavras proferidas...

"Então um dia você..." pensou o Fantasma.

E por uns três dias contou em volume de conspiração uma série de estórias para o moleque. Cada um dos cinco minutos do horário da ração eram-lhes preciosos. Fragmentavam ao longo do dia trabalho compartilhado de modo que não chamasse atenção dos carcereiros. O Fantasma sussurrava, o Bicho ouvia...

Foram três dias de estórias e então O Fantasma desapareceu outra vez.

DOIS.ZERO.OITO.QU4TROWhere stories live. Discover now