Ovo-ruim

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O Bicho tinha cadão de coisa p'ra fazer depois da liberdade. Primeira era ganhar nome, alcunha, apelido, ou como lá se possa chamar a coisa que começaram a chamá-lo. Até então não tinha nada dessa coisa, era só mais um que engrossaria a sopa do pessoal do topo. Mas o Bicho era bicho teimoso, mais do que isso, parecia ter vindo da desova com cabeça feita, ideia de desdesistir, de guentar o tranco como se soubesse de coisa que ninguém mais sabia.

Por isso começou a dar trabalho a quem quisesse desvivê-lo. Tinha morrrido já uns quantos de sua turma, uns por tiro, outros por faca. Teve um coitado que deu azar, em fuga, caiu em toca dos morrendinho justo quando estavam com fome e sem a pedra-paz. Botaram-se no dito com a raiva das maiores, puxa daqui puxa dali separou-se braço do corpo, perna, 'té mesmo os bagulho de macho teve quem mastigasse cru.

Um horror.

Nessas feitas o Bicho ouvia os gritos aqui e ali. As rajas de metralhadora, o corre corre corre pelas vielas imundas. Mas Bicho que era, vinha camaleando-se pelos zincos, rateando-se por buracos exíguos, tomando da própria urina e economizando o que restava-lhe de energia.

Em sua cabeça de gente que quer desvoltar os males, bem sabia que para prática pôr tinha antes de viver, de morrer não podia de jeito algum. Depois encaminhava o resto, mas por cálculos seus, uma duas semanas e a gente o teria esquecido, e só então quem sabe intrometer-se entre eles.

Mas na vida sabe c'mo é, nem tudo sai como o imaginado. Ia levar mais tempo, pois parecia que o Chefe do Movimento tinha 'garrado birra com ele, e rondas passavam os dias em sua caça. Sempre em grupos de sete oito, armados pelos dentes, traje oficial, bermuda, camiseta cavada e colarzão no pescoço. "Viu ovo-ruim, Dona?" perguntavam pelos cantos. Ovo-ruim, era assim que chamavam os desovados pela polícia. Gente mal-vinda que tinha de ser controlada para que não intentassem de bagunçar as coisas na comunidade, afinal, tinha tudo entrado nos eixos...

Só o fato do fidamãe não se apresentar voluntariamente já demonstrava o quão ruim era aquele ovo-ruim.

De ovo-ruim para Bicho, foi pouca coisa então. Escondido das gentes, mesmo dos que não aparentavam riscos, movia-se pelas noites, amelheando um pote de ração aqui acolá. Encontrando canos com gotas dágua que lhe reluziam como ouro, e principalmente esquivando-se como um fantasma. Ou um bicho intrometido.

De primeiro teve de tirar roupa de cadeia. Ser alvo já não é fácil, pintado daquele jeito 'inda pior. Ficou quase dia todo andando nu, que até menos estranho era. Depois surrupiou calças velhas e camiseta rasgada de um morrendinho jogado na sarjeta. Desvivia o coitado, colher e isqueiro do lado. Dose grande pelo jeito.

O Fantasma até tinha lhe dito a quantas andavam as coisas do lado de fora, quantas que para ele não fazia muito sentido, tinha nada de margem para comparar. Mas coisa é ouvir estória, outra é vivê-la. Nos dias de fuga tinha já podido construir sua compreensão das quantas.

Tinha ali monte de gente, sé é que gente descreve o monte que tinha ali. Se empinhavam e se afundavam nos barracos fedendo a mofo. Era pois também um mundo vertical, de sobe e desce por corredores estreitos que mal passa um. Por quem que passa vê medo ou fome nos olhos murchos. Pelo dia poucos se andam pra fora dos quadrados que habitam. Invadiu casas e só viu vidros com aquela bolota nutricional. Ração que nem a da cadeia, mas pior, lhe parecia. Numa ou outra encontrou restolho de ratinhos, mas pelo visto caça também era pouca. Metade dessa gente, tudo morrendinho, acalmados pela pedra-paz vendida pelos do Movimento. Esses, aliás, os poucos que tinham sustância por aquelas paragens. Comandavam tudo por ali, e embora praticamente não houvesse dinheiro ou coisa parecida, de algum modo sempre monetizavam seus negócios.

Parte dos negócios, o Bicho em sua toca ouvira, vinha da troca de ração por pedra-paz ou vice versa. Muita coisa, aliás, o Bicho ouvira incógnito. Inclusive dos boatos sobre o ovo-ruim que tinha sumido. Ah, se coisa que gente não perde 'té mesmo no inferno é a capacidade de contar estórias. Já tinham algumas sobre ele. Fugiu da comunidade. É meganha infiltrado – às vezes ocorria este tipo de coisa como prevenção que surgisse alguma liderança perigosa por ali – ou então desapareceu como um santo.

Mas até aí, 'inda não era Bicho. O nome começou a pegar depois do cerco. Bobagem dele que os do Movimento não lhe achariam ali. Tinham canal com a Zona de Cidadania, o que significava melhor jeito de pegar rasto de ovo-ruim.

O Chefe mandou onze dos seus. Tudo cabra armado, sem chance de dar errado. Mas deu. Bicho já tinha de ter sido bicho na cadeia, não fosse não era ovo-ruim, mas desvivido, isso sim. Bicho de antena ligada, acuado e atento até mesmo ao bater das asas de um mosquito. Gente do Chefe achou que número bastava. Bastava não.

O Bicho tinha com ele, claro, uma ou outra faca surrupiada, mas nada parecido com as metralha e as pistolas dos caras. Mas ele tinha ganha de não desviver. O Fantasma tinha plantado nele muitas sementes, mas para germinarem, só desmorto. Nem a pau que os caras iam pegá-lo. Matou um por um, o último foi que nem daqueles engalfinhamento de cachorro quando cachorro 'inda havia. Rolaram por terra e pedra. O Bicho matou esse com os dentes. Foi o que disseram quem viu a cena. Mordeu forte no pescoço, dente forte de ovo-ruim, de quem nunca vez uma cachimbou pedra-paz. Se foi deve ter sido, porque começou aí o negócio de Bicho.

"O ovo-ruim é um bicho das malvadeza".

"Matou como bicho-fera os hôme de Pai Urso".

"É louco como bicho. Melhor não se meter."

E por aí foi se indo os falatório sobre o vulto que agora quase todo mundo sabia que habitava a comunidade. Começaram a desviar dele como desviavam dos caras do Movimento. O que também coisa boa não era porque morro que se preze dono só tem um. Tadavia, Pai Urso é que seria agora mais cauteloso com aquele berne que começava pururucar a pele.

Antes que o Bicho crescesse ainda mais, o Chefe iria cobrar a quem cabia aquela desova. O problema não era de todo seu, que os outros entrassem na festa também.

DOIS.ZERO.OITO.QU4TROWhere stories live. Discover now