Mãe Kandonga

4 0 0
                                    

Terrêro de Mãe Kandonga é que nem coração; graúdo, espichado, sempre cabendo mais um necessitado. Foi se erguendo há anos resistindo, cercando de gente sua, filhos das crenças que não se permitiam mais. Dança só na madrugada pra mó de não arriscar empolgação, reza até tinha, desde que certeza de espião passar longe. Ficava num dentro da Zona Livre, essa coisa grande, tem de tudo, terrêro se perde na imensidão do morro. É caminho certo pra utopista, andarilho, maltrapilho ou qualquer um que ainda mantenha as ideias em ordem com tudo que acontece dentro e fora do mundo que vale. É também paragem p'ra quem faz de conta revolução que não existe porque não tem gente que é bem pouca, as certas, menos ainda. É lugar também pra um qualquer que seja que caía nas desgraças dos Da Cruz.

Para lá se foi levado o pobre Bicho. Tava quase entregue aos Hôme do Sinhô. Os apito dos voador, os tiro de tudo que é lado, corria feito besta envaretada esperando só desvida chegar galopando em cavalo brabo. Já se falava daquela coisa que incomodava que nem berne. Voz daqui e ali diziam que os Hôme do Movimento odiavam como medo tinha do Bicho. Bicho c'um raiva, perigoso. Pra gentes que ainda se podia chamar assim e até p'ros morrendinho que pouco viam de cada dia, era bicho-verme também. Escamoteando ração, surrupiando os ratos milagrosos que por vias aparecessem. Bicho esperto que era, isso sim.

Foi visita de Mãe Kandonga que tivera vontade. Se tanto crente-ruim largava pro morro atrás é que boa gente divia ser o tal Bicho. "I si for truque, meu filho". Voz doce, voz de mãe sempre se tira de dizer não com jeitinho de delicadeza. Mas se não fosse truque, quem sabe perdessem gente importante das ajudas para quem sonhava ter causa. Azaiôn, muleque das ligereza, primo-neto de Kandonga, que fizera a jornada buscando encontrar a resistência. Caminhou caminhou ouvindo coisa muita. "Ouvi dizer que lá pro sul tem até um grupo formado". "Me falaram que no norte um fulano se ergueu e veio gente c'um ele". No norte contaram para Azaiôn que de verdade "a revolta ia começar logo era no rio, terra de gente inteligente, gosto de tudo que é coisa". Foi no dia que ele desfiliou-se dos utopistas para sozinho criar grupo sem nome ainda. Ia ser algo entre o fatalista, sonhista, realista, revoltadista. Não sabia ainda e estava difícil para achar quem trocar sugestão. De andança em andança pelas Zonas Livres só que não tivera como única descoberta que desgostosos não eram tantos e quem podia ficava para depois da sombra, evitando qualquer vislumbre de olhar do Governo.

E culpar de que jeito qualquer tentativa de reação a tudo. Quem estava fora das bençãos tinha coisa mais pra lidar. A fome quando ainda são, o tempo quando doente. Eram tempos mais do que difíceis para os que ainda tinham sanidade. Barriga roncando, dar jeito de esperar passar as horas enquanto de um jeito ou outro ouvia os pastores-governantes dizendo que os que ainda não tivessem sido abençoados, o seriam quando se entregassem a deus.

O caso é que estava difícil marcar hora e local para tal entrega. Jeito era mesmo esperar pelo dia da loto, cepeéfe não mão e chance de viver pelo menos um ano de glória e consagração. Pelo menos essa era a promessa, promessa que atrapalha ainda mais consciência e sanidade. Azaiôn, o quase morto, o que andou e voltou pro morro, é que convenceu velha Kandonga. "Levo pro meu cafofo mãe" disse pedinte p'ra mulher que não queria enrosco. Para resistir tinha que evitar riscos, deschamar atenção, quase não existir. "Mas fio, essa gente acha ovo-ruim rapidinho" era dos argumento, bom, quase irrefutável. "Mainha sabe que a gente dá um jeito".

E dava mesmo porque Azaiôn era entendido das coisas velhas. Tinha pisado em muito lixo velho. Notebooks, smartphones, e outros trecos que ela sabia desmorrer e até ligar no gato dos Da Cidadania. Mais motivo pra terrêro popular, devagar degavarinho a rede entrava e tela se enchia com as coisas de quem era gente. Só coisa boa e bonita e nenhum remorso pelas cercanias de tudo que fora deixado para trás. Azaiôn até evitava p'ra mó de não deixar crescer tanta e tanta raiva no coração.

Raiva nunca é boa, de jeito nenhum. Rastafári respeitoso não se entrega ao ódio, inda que ele o cerque tanto. O garoto deixava isso pendurado no lado de qualquer coisa e trabalhava dia pós dia tentando construir o sonho.

Tinha ouvido que dentro das Zonas Cidadãs tinha gente que se fingia de crente pra não fazer visitinha pro capeta. Tinha até descoberto que o Estado Envangélico bonzinho e compreensivo que era deixava conviver com eles meia dúzia de católicos-capitalistas, desde que esses continuassem quietinhos como sempre. Uns ficavam por medo, outros por conveniência, e quiçá um ou outro continuasse ali só esperando pelo dia da revanche. Ah se achasse uns.

Azaiôn até tentava quando não tinha que lidar com cousas mais imediatas. Como salvar o Bicho do Capangada de Jesus. Em eras primitivas porrete ajuda, clanck e pronto Bicho desmaiado para ser tirado dali. Contou com dois magrão-rasta pra carregar o hôme p'ro terrêro da Kandonga. Mais poquinho e é que Bicho desvivo ficava porque os Da Cruz estavam nos garrotes. Disso além, o cara 'tava fraquejado com os pulsos sonoros e os tiroteios. Tinha 'té ferimento no braço, pobre coitado. Mas tinha sorte o Bicho. Os pulsos bloqueavam os rastreadores, por isso chance dada a Azaiôn.

Tinha quinquilharias aos montes no barraco seu no terrêro. Coisa da segunda década. Quase nada funcionava, primeiro porque Zona Livre o é até de energia fazia dez anos. "Não podemos conviver com os desvios de energia de uma gente larapia que faz subir os custos dos cidadãos" foi uma das coisas que o presidente-pastor tinha dito ao ordenar que nenhum lasca de luz chegasse até as Zonas Livres. Mas sabe como é, gente é mais forte que bicho nessas de não querer desviver. Dá sempre um jeito enquanto o governo ainda finge que de longe acredita que as luzes daqui são de boas velas. O gato no barraco de Azaiôn então ligava a parafernalha toda.

Ele tinha ficado é bom em deshipar as gentes. Outras razão porqueele tinha também um pouquinho mais de carne sobre os ossos    

You've reached the end of published parts.

⏰ Last updated: Aug 31, 2018 ⏰

Add this story to your Library to get notified about new parts!

DOIS.ZERO.OITO.QU4TROWhere stories live. Discover now