As Zonas-Livres

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Há muito que polícia não subia morro, quebrava favela. Lógico que isso tudo para não dar assunto a quem maldizesse do governo, desfeitando a Zona Livre. Que se virassem ali, aquela massa desfuncional, sem razão de existência mas que quando morte não viesse, tinham que ficar n'algum lugar. Que fosse naqueles morros, e que ali ficassem. Disso o Estado, claro, cuidava, criava condições, tinha também o acordo com o Movimento, gente melhor de situação que mandava no todo resto que dava. Então, nada de polícia, nada de robôs subindo morro, trocando golpes com gente quase morta. Mas se a polícia não subia, não significa que a sociedade nada fizesse.

Em dias normais, de venda de falsas esperanças, de cuidados com a estabilidade, vez por mês, semana talvez, só subia envangelizador, gente caridosa, fala doce, potes de promessas. Livres do Estado, mas nem tanto, porque a presença dos pastores por ali, mais significava do que só converter. Servia também para não cortar a linha por mais fina que já estivesse. Assim, aquela gente quase desviva sabia de tudo do acontecido na Zona de Cidadania, naquelas ruas paradisíacas para além do muro-choque. Nos barracos três coisas não podiam faltar, a ração, a pedra-paz e os aparelhos de telefone. Tudo nas mãos, nas pontas dos dedos. Um ou outro tinha ainda televisão, coisa boa, pública, tudo transmitindo as boas notícias do Governo, e, claro, também das coisas de Cristo. Ah sim, tinha também outra coisa que não faltava por ali, pendurado nas paredes de lata dos barracos, grudado nos muros das quebradas, os cartazes d'Ele. Cabeludão e barbudo, sorriso e olhar enigmático, pouca gente sabia dizer ao certo se de brabo ou de feliz. Até podia ser brabeza, afinal, o pai dele não levava muito desaforo pra casa. Às costas do barbudão, o fuzil atravessado, coisa tão antiga quanto ele, diziam, numa mão a adaga, coisa usada também na proteção das boas famílias. A frase era sempre a mesma "Cristo Rei te acompanha ao lado. Ele olha sempre por você". Na Zona de Cidadania, terra de gente culta, ninguém duvidava disso, nas Zonas Livres, mesmo que no íntimo do pensamento, vez por outra 'té duvidava. Pior 'inda é que às vezes até parecia que o barbudão via tudo mesmo, pois não muito raro um ou outro grupo dos Da Cruz dava cabo de indivíduo suspeito de heresia.

Viu? É isso mesmo que você está pensando, se os Polícia, quase tudo buneco de lata, não sobe o morro, pode crer que os Da Cruz sobem sem moléstia alguma. Na verdade, nas Zonas Livres duas coisas são 'inda mais temidas que os Polícia, os "irmão do Movimento" e os Da Cruz, nome chamado pelos dali, oficialmente conhecidos como Soldados da Fé nas zonas d'outro lado dos muro-choque. Medo mais dum que outro sempre variava os tempos, mas certo é que os Da Cruz se preciso, faziam até o mais terrível Chefe de morro baixar zoreia.

Nas telas grandonas espalhadas aqui e ali pela favela, ligadas vinte e quatros horas, sempre tinha programa ou outro contando a história de glória e louvor daquelas boas almas da sociedade, dedicadas a proteger a boas moral das famílias brasileiras. Um exemplo, nada de dinheiro público, tudo dízimo de bom fiel que sabia a necessidade do gigantismo daquela obra. Levar a palavra e rechaçar qualquer pensamento herege que diziam no passado ter feito coisa ruim do país. No aparelhinho pessoal ou nas telonas comunitárias dava para se construir uma boa ideia do tamanho daqueles bons soldados. Eram uns milhões deles, farda bonita, preta, protegida das proteção divina que 'té mesmo quem sabe fosse desnecessário os coletes e o capacete pretão, a cruz emoldurada naquelas roupas imponentes, por certo deveria proteger mais que o cinto com pistola e bomba-pulso, os rifles e lasers às costas. Isso tudo em kit de um em um, mais claro os carro fortão, alguns aeromóveis, e milhares, milhares mesmo dos dronecruces que quando mais prático, faziam o trabalho sem grande risco às boas almas cristãs. Dronecruces geralmente eram usados para entrar em barraco e libertar a terra de alma herege ou perigosa. Viam, reconheciam, atiravam. Naquela ação de caça ao Bicho do Morro dos Milagres, pelo menos cem desses dronecruces estavam em ação. E embora nem Governo nem Igreja se pronunciem das ações e operações dos Da Cruz, quem vive no pé do morro, no meio dele e 'té mesmo no topo vai confirmar sem grandes diferenças que pra mais de mil soldados subiram naquele dia.

Pros que fingiam temer o inferno,melhor atuavam quando demônios.    

DOIS.ZERO.OITO.QU4TROWhere stories live. Discover now