Almir

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O frio e sua irmã, as trevas, se esgueiravam pelos cantos, grudando nas coisa e se difundindo pelas ruas. Era como se tudo tivesse uma fina camada de escuro e frio sobre si. A chuva batucava uma sinfonia monótona nas janelas grandes do prédio. Era um prédio bem antigo e com poucos andares, localizado em uma rua tradicional no centro histórico da cidade de João Pessoa. Tinha contornos barrocos que nem pareciam ser antigos o suficiente pra serem barrocos, nem pareciam ser modernos o suficiente para serem uma imitação. O prédio tinha essa arquitetura esquizofrênica porque tratava-se de um experimento falido avant-garde do arquiteto que o desenhara. O resultado geral era que o prédio inteiro jamais parecia ter deixado o uncanny valley da arquitetura e sempre causava uma má impressão em quem o observava, o que significa, basicamente, que o prédio inteiro tratava-se de uma peça de arte contemporânea. Apesar da incerteza no bom gosto, no entanto, o prédio era de aparência indiscutivelmente velha.

A noite cinzenta e fria, escura e silenciosa descia seu manto gótico sobre a cidade nublada pelo temporal. Dentro do apartamento imediatamente abaixo da cobertura do prédio estava frio e escuro, a causa principal disso era que as luzes estavam apagadas e o isolamento térmico do prédio não era lá dos melhores. Só o que se via de iluminação eram as luzes cintilantes de um aparelho de som de última geração. Havia um bom motivo para uma pessoa que tinha dinheiro o suficiente para esbanjar em equipamento eletrônico caro estar morando neste muquifo (ainda que fosse um muquifo bem grande) em alguma rua esquecida por Deus. Não, não era o crediário das casas Bahia. A explicação é que ele era um vampiro! (insira aqui uma música dramática), e portanto era naturalmente atraído a coisas decadentes e góticas.

Houve o clarão de um relâmpago e em seguida um trovão que abafou o ruído do caixão sendo aberto. Almir abriu os olhos rapidamente, e depois rapidamente os fechou e começou a cutucá-los com o dedo, lamentando-se. Era uma casa muito velha e o barulho do trovão havia tirado poeira do teto. Sabe-se, por experimentação empírica, que pequenas partículas sólidas tendem a ser atraídas para dentro de olhos, e foi justamente isso que aconteceu.

Almir era vampiro há uns dez anos. Fora Transformado para dentro do vampirismo por uma motoqueira skinhead que aparentava ter dezoito anos de idade. Não foi nada muito glamouroso, na verdade. Ela simplemsente o sugou até secar, depois deu-lhe um pouco do próprio sangue e voilá, vampiro fast-food. Um negócio rápido, que se processou no quarto de um motel na rua da república, mais rapidamente que a primeira experiência sexual de um menino virgem de 15 anos.

Depois que foi transformado, por força das circunstâncias, Almir passara a acordar somente a noite. Embora isto pareça uma radical mudança de hábito, sua mãe nunca o vira acordar outro horário que fosse desde que pobre Almir tinha 13 anos. Ele não via mãe desde os 11. Ambos se comunicavam via bilhetes afixados na porta da geladeira. Parecia que tudo o que Almir fazia era lacrimejar e ficar parado, com suas eternas feições tristonhas.

Almir era um lamentador de primeira categoria. Poucas pessoas em toda a grande João Pessoa tinham condições de competir com ele nesse quesito, embora pudessem competir com ele em virtualmente qualquer outros setor da atividade humana. Acontece que Almir já não era mais humano, ele era um vampiro, com habilidades sobrenaturalmente amplificadas. Basicamente isto queria dizer que todas as suas outras habilidades haviam subido para o nível do cidadão comum, mas seus lamentos atingiram agora um grau de intensidade sobrenatural. Como se Nietzsche, Kurt Cobain e Renato Russo tivessem se fundido, mas sem as qualidades.

Dois meses depois que foi transformado, Almir usou seus poderes para conseguir um emprego em uma boate (ele ficou se lamentando por não ter emprego e ser um coitado, em linhas gerais) onde pudesse trabalhar duas vezes na semana e ter os finais-de-semana livres. Com o dinheiro que juntou, foi morar com sua namorada/senhora neste apartamento, que na época eles haviam comprado juntos. A mãe de Almir continuou a escrever para ele através dos bilhetes na geladeira e, ocasionalmente, Almir passava na casa da mãe e respondia. 

Nas primeiras duas semanas de lamentação, a namorada dele pediu penico e foi embora. Ele chorava tanto sangue que precisava se alimentar mais que o normal. Certa vez ele viu uma borboleta cair na teia de uma aranha e isto o levou a pesadas reflexões sobre a natureza das coisas. O processo desencadeado seguiu rolando ladeira abaixo e culminou em uma lamentação tão intensa que depois ele correu lá para baixo e, na fome, secou feito uma sanfona um cachorro que estava passando. Depois voltou a ficar triste. E cá estava o velho Almir, lamentando-se pelo cisco no olho.

-- Oh céus, até mesmo minha casa me odeia! Será que não há lugar one um vampiro descente possa ser feliz? Oooooh deus cristão, deus muçulmano, deus dos outros, virdes vós em meu auxílio, pois já não tenho mais deus! -- gemeu Almir para as paredes e, enquanto o fazia, ajoelhava-se no chão com as mãos para o alto enquanto dramáticas lágrimas de sangue rolavam lentamente pelo seu rosto morto, como se fossem gotas de um mel de abelha anormalmente rubro descendo pela lateral de uma colméia anormalmente albina.

Depois de ficar sua hora diária frente à janela, lamentando, Almir começou a organizar a casa para a turma que iria chegar. Ele procurou por um tapete que tinha comprado antes de ser transformado, era um tapete fantástico, muito bem tecido e feito com fios grossos vermelho vinho. Infelizmente, tinha ficado na casa de sua mãe.

-- OOOOOOOOH CÉUS! Como pode o destinho ser tão severo?! Será que mesmo minhas posses me são negadas? Oooooh vida cruel que me deixou, será que mesmo um morto-vivo não tem o direito de ser feliz ao menos uma vez? Em seu próprio refúgio?! -- E ficou lá, parado, lacrimejando no meio da sala e soltando ruídos que faziam qualquer ouvinte sentir pena e querer amaldiçoar os deuses junto com ele e todo o seu dinheiro e trabalho fácil tristes. Então, arrebatado de inspiração por todos estes reveses que o assolavam de todos os lados (na visão dele), Almir resolveu escrever uma poesia. Sentou-se à luz (de velas) da escrivaninha e começou a escrever um negócio mais ou menos assim:

As coisas que o coração acredita

E por elas clama com fulgor atroz

A academia dos biriteiros edita

Os monossilábicos da minha voz

Por entre véus esfumecidos crêem

Os crentes, tolos, cegos e vencidos

E antes todos los tivessem crido

Para poupá-los do suor de terem

Que convencer o mundo e todos nele

De suas crenças e crianças vis

Por entre os deuses e para que eu zele

Pelos seus salmos de suor e sangue

Na contra-prova fútil do que é ser

Idiota e crer e ser enxangue.

Depois Almir foi tomar café. Mas o café se parecia muito com uma bacia de água suja que os prisioneiros da Bastilha usavam para lavar o rosto. Então ele pensou (enquanto lamentava, claro) que era a metáfora suprema da existência dividida do passado no futuro, pela ciclicidade do universo e a reaproveitação máxima da economia satânica universal da matéria-energia primitiva. Aproximadamente. O mundo, ele decidiu, era uma cebola, e todos sabem que cebolas fazem as pessoas chorarem. Portanto Almir lamentou.

Almir lamentou e lamentou, e lamentou com tamanha intensidade e dedicação que todos os residentes do prédio inconscientemente sentiram um impulso coletivo primordial de fugir e decidiram, em unanimidade coletiva, que queriam sair. As escadas se encheram com pessoas em suas roupa de dormir, correndo feito desesperadas, carregando desajeitadamente alguns agasalhos e as chaves de seus veículos, como se o prédio estivesse sendo evacuado devido a algum incêndio de proporções amazônicas. Depois houve silêncio, e Almir lamentou até que os outros chegassem

Uma História GóticaWhere stories live. Discover now