A Lua tentou emitir seu brilho prateado sobre a cidade, infelizmente ela teve que se contentar em brilhar atrás das cortinas de pesadas nuvens que tacavam água em todo mundo lá embaixo. Empoleirado dentro de um apartamento escuro e velho no centro histórico, algumas luzes piscavam enquanto um aparelho emitia um ruído estranho... Talvez fosse música, quem sabe?
Almir ainda estava na sua quinta sessão diária de lamentação quando a campainha tocou. Ele estava se lamentando para a Lua, que em sua eterna esfera de solidão prateada, tinham que contentar-se em ver seu brilho obscurecido pelas inferiores nuvens que absorviam o...
-- Abre aqui, Almir! -- Gritou Josias, por trás da porta de madeira que separava o refúgio de Almir do corredor das escadas. Almir lamentou-se por ter pessoas gritando no pé da sua porta, lamentou-se por essas pessoas serem seus amigos e lamentou-se mais uma vez porque estava se lamentando. Depois abriu a porta e recebeu os dois com calorosos abraços e cumprimentos como "que Lilith te amaldiçoe".
Enquanto ainda estavam no corredor, Alfonso apareceu, arrastando sua carcaça cadavérica pouco cheirosa envolta em um sobretudo surrado. Ele passou pelo grupo e deu-lhes um olhar enquadrado por olheiras tão fundas que poderiam ser foco de dengue se ele olhasse para cima nessa noite de chuva. Almir, Josias e Prometéa apenas balançaram a cabeça nervosamente e deixaram Alfonso passar. Depois os três entraram no apartamento e iniciaram os preparativos para começar o evento.
Prometéa e Almir ainda estavam organizando o som e o altar satanista quando finalmente Jurandir chegou, fedendo a todo tipo de substância ilícita. Para variar, ele havia se perdido no caminho e só agora juntara consciência suficiente para se localizar. Almir lamentou por ele. E continuou lamentando.
Josias e Alfonso ficaram encarregados de organizar as músicas, mas Alfonso apenas sentara-se no parapeito da janela, a contemplar seja lá o que for que ele estivesse contemplando, e Josias ainda não juntara disposição suficiente para pedir a ele que o ajudasse com o imenso volume de músicas. No fim das contas, apena Josias estava separando as músicas.
Almir a Prometéa terminaram com o altar, enquanto isso Jurandir destruía o estoque de cerveja de Almir, que lamentou por tudo isto de forma tão intensa que Prometéa teve que remover Jurandir das dependências da cozinha antes que Almir lamentasse todo mundo até a (segunda) morte. No meio disto tudo, Isac entrou pela porta que Jurandir deixara aberta. Todo mundo olhou para ele com olhar de forçada indiferença, com exceção de Alfonso, que olhou com indiferença real.
-- O que estão olhando? Eu sou o que sou e minha natureza manda e o que a poesia em mim traz que é de mais... -- então Alfonso olhou mais para ele, e ele ficou quieto. Todo mundo engoliu seco e um milissegundo se extendeu por quase um minuto, mas nada aconteceu.
Os mortos-vivos (isso exclui Josias) sentaram-se em volta do altar para dar início à cerimônia. Almir vestiu um manto surrado cuja cor original talvez fosse vinho, mas que agora parecia-se mais com marrom.
-- E cá estamos mais uma vez, para honrar o pacto ancestral de Caim! O sacrifício dele e a sabedoria de mãe Lilith possibilitaram o surgimento de nossa raça e o que somos hoje. Saudemos o mestre -- Disse Isac com um tom de voz bastante embelezado, depois fez uma reverência espalhafatosa ao altar.
Enquanto isto, Almir trazia consigo, lá da cozinha, uma bandeja feita de algo parecido com prata. Ninguém respirava em volta da mesa, o que não queria dizer nada, visto que todo mundo era vampiro. Após uma pausa modesta, Almir pôs a bandeja, cerimoniosamente, sobre o altar, de modo que agora era possível vislumbrar seu conteúdo. Todos entreolharam-se com substancial grau de confusão. Sobre a bandeja estava uma folha de alface bem verde.
-- Eerr... O que isso significa? -- quis saber Prometéa.
-- Nosso mestre, Caim, que foi amaldiçoado pelo Deus de terríveis provações... Ai dele, ooooh que destino cruel... Ele era um agricultor. -- Explicou Almir.
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Uma História Gótica
HumorSiga uma noite na vida de um grupo de vampiros vivendo em João Pessoa que se mesclam à comunidade gótica para permanecer ocultos da sociedade mortal. Envolve menos conspiração e sensualidade e mais lamentações de níveis homéricos e tentativas de peg...