Cena IV

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— Vou emprestar os walkie talkies que meu pai comprou. — Paio colocou três tijolões brancos de plástico sobre a cama de seu quarto. — Só preciso sintonizar na frequência certa — disse, e então o aparelho emitiu um chiado chato e contínuo. Ele levantou as antenas de metal retráteis e teclou alguns botões.

— Tem que ler o manual de instruções — sugeriu Bento.

— Aonde teu pai consegue essas coisas? — perguntei e peguei a caixinha de um dos walkie talkies. — Cara, outro bagulho importado? — exclamei. — Vai funcionar direito esse treco? Porque o teu videocassete não funcionou muito bem, com aquelas imagens saindo verdes. De onde isso é? Do Paraguai?

— Cala a boca, meu! — Paio me repreendeu e revirei os olhos fazendo pouco caso. — Pronto! Já configurei. Agora cada um pega o seu e vaza daqui. À meia-noite todo mundo se fala e recitamos a música do Freddy ao mesmo tempo. Entenderam?

Assenti meio sem vontade, sentindo-me um maria-vai-com-as-outras. Bento e eu saímos da casa de Paio, pegamos nossas bicicletas e nos separamos onde a rua principal fazia sua bifurcação. Agora era só aguardar dar a hora para fazer a brincadeira idiota. Em que droga eu me meti...

***

Há músicas cuja voz do intérprete e o som da melodia grudam em nossa mente feito chiclete. Os ponteiros do relógio sequer marcavam meia-noite e a voz das meninas de branco, pulando corda e cantarolando em coro, ecoavam em minha mente. Um, dois, Freddy vem te pegar... Três, quatro, feche bem... com um som melancólico de fundo.

Vozes em coro. Meninas de branco. Acho que a porta do quarto estava trancada. Somente metade do teto do meu quarto estava forrado. Forro de madeira com manchas de infiltração, uma delas formava o contorno de um rosto ovalado que gritava. Na outra metade sem forro, havia telhas de cerâmica vermelha, enfileiradas sobre ripas e pernamancas.

O tempo seguia lento, com o walkie talkie ao meu lado, sem nenhum contato dos outros garotos. Veio um bocejo, depois outro e mais outro, e acabei adormecendo. Acordei com um ruído forte saindo do autofalante do tijolão branco de plástico e tentei mover meus dedos para apertar o botão escrito talk.

— (ruído)

— Alguém aí? Câmbio — perguntei. Sempre quis dizer "câmbio".

— Sou eu, Bento. Câmbio.

— Tô aqui também. — A voz de Paio surgiu . — Já é meia-noite, vamos cantar a musiquinha. Câmbio.

— Certo.

— Certo.

— Depois de cantar, temos que repetir "Freddy, vem me pegar" três vezes. Câmbio.

— Ah, não avacalha, Paio! — exclamei. — Tu não falaste nada sobre isso aí de repetir três vezes. Vou fazer isso, não. Não mesmo.

— (ruído)

— Otário. Medroso. Todos aceitaram mais cedo, então vamos fazer, tu querendo ou não. Câmbio.

Otário era Paio, mas de fato era muito tarde para desistir. E sem demora, iniciamos a cantoria da maldita musiquinha, o nosso polegar apertando a tecla especial vermelha que nos permitia ouvir e enviar ao mesmo tempo as nossas vozes uns para os outros.

Um, dois, Freddy vem te pegar.

Três, quatro, feche bem o quarto.

Cinco, seis, segure a sua cruz.

Sete, oito, fique acordado.

Nove, dez, não durma nenhuma vez...

Houve um intervalo silencioso em que ninguém falou nada até Paio intervir:

— Agora vamos repetir a frase três vezes. Ouviram? Câmbio.

— Certo — respondi.

— Certo.

Naquele momento, seria cada um por si. Cada um de nós invocaria a presença de Freddy Krueger para dentro de nossos quartos. Cantar a musiquinha do Freddy na solidão de nossos aposentos exigia certa coragem, mas o esforço era atenuado ao se ouvir outras vozes soando juntas, mesmo elas não se originando no mesmo ambiente. No entanto, recitar a frase "Freddy, vem me pegar" três vezes, sem outro par de vozes em companhia, causava uma sensação extremamente ameaçadora e uma psicótica sensação de estar sendo observado.

— Então, bora lá — murmurei comigo mesmo, só pra dar mais confiança, e joguei o walkie talkie para o lado. Fechei os olhos, suspirei e repeti: — Freddy, vem me pegar. Freddy, vem me pegar. Freddy, vem me pegar.

Abri um dos olhos, tentando enxergar em meio à penumbra do quarto. Nada vi. Abri o outro olho e meu coração pareceu querer saltar do peito. Ofeguei. Nada.

— (ruído) Terminaram? Câmbio.

Meu corpo subiu e desceu com o chiado do walkie talkie. Maldito Paio. Maldito Paio.

— Já — respondi. — Tudo tranquilo.

— Eu também já. Câmbio — respondeu Bento.

— Aqui comigo deu tudo certo. Viram? Nada de mais. — Paio soltou uma risadinha que chiou ritmada pelo autofalante do aparelho. — O desafio acabou, galera. Somos machos pra caramba! Câmbio.

Grandes merdas, hein, pensei. Essa coisa toda de provar ser macho era invenção do Paio e do Mauro. Meu pai disse, certa vez, que homem de verdade não precisa ficar provando sua virilidade para os outros, porque todos os homens têm uma infinidade de inseguranças. É só saber camuflar tudo muito bem e os outros entram no jogo, cada um com sua macheza. Acho que nesta noite, Bento, Paio e eu conseguimos obter sucesso em tal proeza. Camuflamos nossos medos muito bem. Todos machos pra caramba.

De almas lavadas, apesar das consciências intranquilas, nos restava dormir. Cobertos da cabeça aos pés com nossos lençóis. Vai que o Freddy nos pegava.

Senhor dos Sonhos | WATTYS 2019Onde histórias criam vida. Descubra agora