Cena VI

60 13 0
                                    

Não consigo lembrar exatamente como conseguimos tal proeza, mas cá estávamos, dentro da igreja matriz nos escondendo de Freddy. Igreja é um local sagrado, então imaginei que aquele demônio não seria capaz de nos pegar ali dentro. As mãos de Paio tremiam e ele não parecia estar muito bem. Bento chorava lembrando-se da mãe, apesar de ter tido muita coragem há alguns minutos. Se não fosse por sua ação rápida, sabe-se lá o que teria acontecido comigo, paralisado pelo medo.

— Alguém fala alguma coisa — Paio choramingou. — Bento tá sangrando — ele apontou trêmulo. — E o Freddy tá lá fora...

— Ele matou a mãe do Bento — comentei e estiquei a mão para ver o estado do ferimento de Bento. Uma perfuração meio profunda no lado esquerdo do abdômen.

— A mãe do Bento morreu?!

— Gente... isso não tá certo. — Mordi os lábios e passei a mão sobre a cabeça. — O Freddy é um personagem de filme. De filme! Quem tá lá fora deve ser alguém vestido igual ao personagem, alguém que assistiu ao filme e enlouqueceu.

— Poderia ter sido eu — Paio disse absorto em seu mundinho. — Eu tive um pesadelo e o Freddy apareceu nele, só que o Mauro me acordou por causa de uma besteira qualquer. Poderia ter sido eu, seria uma matança em casa! — Ele ergueu os olhos.

— Quem sabe não foi o Mauro? Ele assistiu ao filme com a gente, não foi? — retruquei com a voz baixa, surpreso comigo mesmo. Poxa vida, num instante idolatrava o Mauro e agora o transformava no principal suspeito.

— Meu irmão? Tá maluco, homem?! Saí de casa e ele ainda roncava no meu quarto...

— É o Freddy Krueger, o verdadeiro. Ele saiu do meu pesadelo assim que acordei — afirmou Bento, seus lábios começavam a apresentar um aspecto roxo pálido. — Qual parte ainda não entenderam, pô?

— Calma, gente. Escutem, que tal esse meu raciocínio... — interrompi. — Freddy é só um personagem de filme, correto? Ele só tem poder dentro dos sonhos de alguém, certo? Então, mesmo que seja o Freddy real, ele também deve ser muito burro, porque fora dos sonhos fica mais fraco. Será fácil acabarmos com ele.

— Fácil? Sei não — Bento redarguiu, com a mão tapando o ferimento na lateral da barriga.

— Por que não? É a melhor teoria que ouvi até agora! — respondeu Paio.

— Pode até ser, só que tem um problema — Bento retrucou. — Podem acreditar, Freddy está fora dos sonhos e em pleno mundo real, mas não está nada fraco. Vai por mim.

— Como vamos destruir ele então? Porque a estratégia de dormir, esperar ele aparecer nos sonhos e agarrá-lo pra trazer p'ro mundo real não rola mais — disse, lembrando-me do filme.

— E aqui nem é aquela cidade do filme, muito menos o Estados Unidos — Paio comentou apreensivo, entrelaçando os dedos agoniados. — E o Freddy ainda cantou aquela musiquinha na versão em português do filme.

— Peraí! Então, isso significa... — Bento começou o raciocínio e esbugalhou os olhos em minha direção.

— ...que o Freddy Krueger que vimos está livre e não segue a lógica do filme — completei. — E fomos nós que ajudamos a libertar esse demônio dos sonhos. Mas como? Como?

— E se ele estava o tempo todo preso na fita VHS? — Paio comentou subitamente.

— Então... então foi tua culpa, seu merda! — Bento vociferou, erguendo-se do chão debilmente. — O demônio estava preso na fita e quando tu nos obrigou a fazer aquele ritual ridículo cantando a música do Freddy, acabamos soltando ele! — Bento virou-se em minha direção: — O ritual foi ideia do Paio, e não foi à toa que o Freddy Krueger atacou primeiro nos sonhos dele! Como não conseguiu, ele me atacou em seguida. Foi culpa desse desgraçado aqui! Por culpa dele a minha mãe morreu. — Sua voz embargou e começou a chorar.

Bento tombou novamente e deixou-se cair ao chão. Ficamos em silêncio. Paio, o maldito Paio foi quem nos havia colocado nessa enrascada. E agora aquele demônio estava à solta, forte e sem necessariamente precisar estar num sonho para agir. Um monstro sem jaula, fora da lógica do filme e livre de qualquer motivação para matar. Poderia matar por simples prazer. Não em busca de vingança, de justiça ou qualquer um desses papinhos, apenas pelo prazer de assassinar.

Paio começou a chorar pedindo desculpas, tinha agido assim porque queria ser parecido com o irmão e blá blá blá. O caso é que a merda havia sido feita e não encontrávamos uma solução para resolvê-la. Até que Paio parou de se lamuriar, usou o cérebro para algo que prestasse e disse:

— Talvez... se destruíssemos a fita...

Senhor dos Sonhos | WATTYS 2019Onde histórias criam vida. Descubra agora