Cena V

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Ruído. Ruído. Ruído.

Acordei com um chiado insistente vindo do rádio walkie talkie. O relógio marcava 3h00 da madruga. Só podia ser um dos dois fazendo gracinhas, com certeza devia ser Paio.

— Qual é, Paio? Já deu, chega com essa merda de brincadeira.

— (ruído) Sou eu... Bento... — Era a voz de Bento, só que embargada e nervosa.

— Bento? Está... chorando?

— Ele... ele tá aqui...

— Quem?

— Freddy... ele apareceu nos meus sonhos e depois... depois saiu de dentro dele! Tu pode... cara, precisa vir aqui comigo... — Ouvi seus soluços. — Agora! A minha mãe... (ruído)

— Bento? Bento, tá me ouvindo? — Tentei chamá-lo, mas a frequência se perdeu entre ruídos de interferência.

Bento não morava muito longe de casa e, ao contrário de Paio, ele não costumava brincar com assuntos sérios. Eu tinha que sair de casa sem acordar ninguém, isso era fácil. Casa de cidadezinha do interior não costuma ter grades nas janelas, então era só abrir tudo bem devagar e sair. E foi o que fiz. Pulei para fora, recostei a janela do meu quarto para parecer que estava fechada, peguei a bicicleta escorada atrás da bananeira no fundo do quintal e pedalei em direção à casa de Bento. Levei o walkie talkie comigo e tentei contatar Paio, já que Bento não me respondia mais; entretanto, também não obtive nenhuma resposta.

Todo o bairro estava imerso em uma luz penumbral e o ar era um misto de frio e umidade. As mariposas bruxas e outros insetos voadores rodopiavam ao redor das lâmpadas halógenas dos postes baixos, enquanto um acauã piava seu riso maquiavélico no interior das áreas de mata virgem.

— (ruído) Quem... é? Câmbio. — Finalmente Paio me respondeu.

— Paio? Paio! Sou eu, cara. O Bento me chamou no walkie talkie agora a pouco, desesperado. Aconteceu alguma coisa com a mãe dele! E parece que ele teve um pesadelo com o Freddy Krueger! Sabia que ia acontecer alguma merda, tu ferrou a mente dele. Porra, levanta tua bunda mole da cama e vai pra casa do Bento agora pra gente ver isso! — Houve silêncio. — Paio?

— Eu ouvi. É que eu também... também tive um pesadelo com o Freddy... (ruído) Vou me vestir e... (ruído)

E perdi o sinal de Paio.

Pendurei o walkie talkie no guidão e pedalei veloz. Em minutos alcancei a rua da casa de Bento e vi a luz da varandinha acesa. A casa de Bento ficava de esquina e era a primeira de uma rua de piçarra longa e comprida, que chamavam de Piçarral. Passando sua casa, começavam as terras de fazenda, com áreas para criação de gado e vastas plantações de milho e arroz. Sim, o diacho do garoto morava bem em frente a um grande milharal, com direito até a um espantalho feioso. Que má sorte! Cheguei mais próximo, joguei a bicicleta para o lado e corri até a porta.

— Bento? — Esmurrei a porta. Torci para que não fosse algum trote, era só o que me faltava saber que Bento se unira a Paio para pregar uma peça em mim.

Mas não era nenhum trote. Antes fosse um. Bento abriu a porta com a camisa ensanguentada e o rosto lívido, em pânico. Num reflexo rápido, pulei para trás.

— Puta merda! Que isso, bicho?!

— Deu errado! Ele apareceu, a gente libertou ele, cara! Minha mãe... meu Deus do céu! — Bento desabou à minha frente, de joelhos, a cabeça enfiada entre as mãos como se tudo aquilo fosse difícil de acreditar.

Esfreguei a mão em seus ombros para acalmá-lo, passei reto pela lateral dele e entrei na casa.

— Ahh, cacete! — Tapei a boca. A mãe de Bento estava jogada ao chão, com lanhadas profundas que iam do rosto até seu estômago aberto e revirado. — Não pode ser! — falei gritando. A mulher estava morta, não havia dúvidas quanto a isso.

Bento se arrastou para além da porta e forçou-se a vomitar. O cheiro de sangue não era nada legal, nem de longe lembrava aquele odor mais adocicado que costuma sair de machucados em nosso dedo, na mão ou num joelho ralado. Era um odor ferroso nauseante, que deixava o recinto abafado e quente. Torci meu corpo para vomitar, mas me segurei e corri para fora, espalmando-me pelas paredes. Do lado de fora, vi alguém de bicicleta surgindo no horizonte. Pedalava com força em linhas tortas e desesperadas. Era Paio.

Cês... estão... bem? — Ele arfou sem fôlego, falando ainda de longe.

Antes que eu respondesse, Paio gritou e derrapou a bicicleta. Caiu num baque, rolando várias vezes pela piçarra, arrastou-se e então ergueu os olhos esbugalhados, apontando o dedo em nossa direção.

— Tá vindo ali, atrás de vocês! Corram, seus miseráveis! Corram! — Ele se levantou e equilibrou-se novamente sobre as duas rodas. — Vumbora!

Olhei para trás e no centro daquela longa rua deserta havia a silhueta de um homem. Chapéu na cabeça, garras afiadas de aço nas mãos e um suéter listrado de duas cores. Ele caminhou até alcançar o facho de luz amarela do poste, o qual iluminou seu sorriso pervertido e sua pele queimada. Era realmente ele: Freddy Krueger! Mas... como aquilo era possível? A hora do pesadelo era só um filme! A porra de um filme!

Minhas pernas paralisaram, a voz de Paio parecia apenas um eco distante. Freddy ergueu suas garras para cima e gargalhou, uivou e por fim cantarolou: Um, dois, Freddy vem te pegar. Um, dois, Freddy... — ele começou a pausar — vemm... te... pegarrrr!

Paio gritou com uma voz fina e Bento me puxou para perto de si, colocando minha bicicleta em pé. Bento subiu e pedalou, enquanto me arrastava, segurando-me pelos pulsos.

— Sobe logo na garupa! — ele ordenou, me acordando do transe. Dei um impulso e pulei. — Foi ele que... matou minha mãe. Ele saiu do meu pesadelo e estripou minha mãe — Bento choramingou.

Senhor dos Sonhos | WATTYS 2019Onde histórias criam vida. Descubra agora