Cena II

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Entrar na minúscula locadora foi como estar em uma loja de doces. Havia poucos títulos nas prateleiras, mas não estávamos em posição para reclamar. Já era um milagre aquele lugar existir e como minha finada avó sempre dizia: "A cavalo dado não se olha os dentes, meu gitito".

As caixinhas de papelão das fitas VHS estavam desgastadas, algumas amassadas e outras roídas, como se algum rato houvesse passado sobre elas, o que indicava que eram todas de segunda mão. Ou de terceira. A maioria era fita pornográfica, um tanto bizarro já que nossa cidadezinha era conhecida por ser muito religiosa devido aos festejos a Santa Luzia e a São Pedro. Outros garotos talvez surtassem com aquelas imagens de mulheres nuas, mas creio que nossos relógios biológicos eram tão lerdos quanto nós três juntos. Vai por mim, observar mulheres peladonas ainda era a menor de nossas curiosidades. Inspirados em Mauro, queríamos ver sangue, terror e medo para todos os lados.

Não à toa, Mauro nos convidava em seus dias de folga para umas festas do pijama na casa dos Paio, e nos deixava assistir escondidos alguns filmes de ação violentos que passavam de madrugada na televisão. Cês têm que aprender a ser macho desde cedo, ele afirmava. E graças a isso, no dia seguinte sempre tínhamos algo de interessante para conversar nos intervalos das aulas.

O dono da locadora era um cara bigodudo e com sotaque engraçado, que todos chamavam de Turco. Na verdade, ninguém sabia dizer se ele era turco mesmo, ou se era apenas um cara que falava um português bem ruim. Mas sem brincadeira, o bigode dele era um monstro bigodão e costumávamos dizer que ele era capaz de esconder até uma criança dentro daquele chumaço preto. Bento tinha muito medo do Turco, apesar de nunca nos explicar bem o porquê, e tinha o hábito de nos afastar de perto dele sempre que o tiozão aparecia para conversar comigo ou com o Paio quando estávamos sozinhos.

— O que as meninos querer alugar? Desenho? Eu ter muita Disney aqui.

Era difícil não rir do sotaque do Turco, mas Bento manteve-se firme e não riu um milímetro sequer.

— Tem Sexta-feira 13? — Paio se antecipou.

O Turco nos observou com olhar malino, alisando a curvatura na ponta do bigodão. Pensei comigo que já era, o Turco não ia alugar a fita de jeito nenhum para moleques como nós. Os adultos acham que filmes de terror podem ferrar o nosso psicológico e nos transformar nos próximos psicopatas em série.

— É séria que querer terror? Não querer mulher sem roupa? — O Turco pegou uma fita com uma mulher nua na capa, exibindo suas partes íntimas desnudas para cima em posição de quatro.

— Oh, não! Fala sério. — Nos entreolhamos sem acreditar. Mas depois rimos que nem idiotas, já que se o Turco estava disposto a alugar pornografia para menores, o que não diria terror!

— Aqui não ter esse. Mas ter outros bons. Novos. — O Turco fez um sinal de OK com a mão e retirou de trás do balcão uma pequena caixa de papelão com fitas cassete novinhas. — Eu ainda não ter tempo de arrumar e tudo ficar na caixa — ele explicou.

E então a vimos lá, esperando por nós, a fita do A hora do pesadelo. Sem pestanejar, nós três avançamos a mão sobre a fita, como se houvéssemos encontrado um glorioso tesouro.

— Quanto custa o aluguel, seu Turco? — Paio perguntou e quando ouvimos o valor, pareceu-nos que alguém havia jogado um balde de água fria sobre nós.

— Ah, galera, tá caro — comentei em direção aos outros. — Só tenho cinquenta centavos de cruzado aqui.

Paio e Bento também juntaram o que tinham nos bolsos e o cálculo dos borós deu bem abaixo do valor necessário. Esperar até que algum canal de televisão passasse o filme já não era mais uma opção. Paio me contou que Sexta-feira 13 já havia sido lançado há tempos e até aquele ano sequer passara na tevê.

— Não estar cara aluguel porque fita ser cara pra eu. Garotos não ter dinheira? — o Turco perguntou e respondemos que não. Ele alisou o bigode novamente e disse: — Se querer tanto, um de vocês poder pagar de outra jeito.

Entreolhamo-nos desconfiados, sem saber exatamente o que o Turco queria dizer com aquilo. Então Bento, que aparentava estar tenso desde que entramos ali, apressou-se e disse ao dono que ele faria o necessário para podermos levar a fita. Paio pareceu desconfortável com a situação, enquanto eu tentava esconder minha preocupação cruzando os braços.

— Não se preocupem, deve ser besteira, algum trabalho braçal — Bento nos acalmou com um sorriso amarelo e Turco ordenou que nosso amigo o seguisse até os fundos do quintal da locadora, onde havia uma extensa mata cerrada que varava próxima ao manguezal.

Paio e eu ficamos para trás, incumbidos de vigiar a pequena loja deserta. Daqui algum tempo talvez esse cenário mudasse um pouco, pois, com a abertura da locadora, com certeza surgiria um novo tipo de comércio, que seria o aluguel de aparelhos VHS. Afinal, ninguém quer se sentir como um peixe fora d'água quando o assunto são novidades tecnológicas.

Depois de uns vinte minutos, Bento e Turco voltaram. Turco com um ar satisfeito e Bento com feição afogueada, lábios apertados e olhar de quem havia feito algo muito errado. Nenhum de nós ousou perguntar o que havia acontecido lá atrás ou que espécie de trabalho nosso amigo precisou fazer para o Turco. No final das contas, conseguimos o filme e um prazo de empréstimo de uma semana. Graças ao Bento.

Senhor dos Sonhos | WATTYS 2019Onde histórias criam vida. Descubra agora