Olívia acordou. Ainda que sem vontade, ela acordou. Sua filha precisava dela e era só por isso que ainda acordava. Essa indisposição não se devia apenas ao inverno rigoroso que fazia nas terras do Reino de Lume. A falta de energia em seu corpo não se dava só por conta da tristeza que tomava sua vida há pouco mais de três anos. Além de tudo isso, era Dia dos Mortos. Para Olívia, um dos dias mais angustiantes desde que seu marido partira para a guerra. Há três anos ela não tinha notícias de seu paradeiro. Há três anos ela não sabia se deveria rezar pela alma de seu marido. Olívia não sabia se, em algum lugar do planeta, o coração de Rômulo permanecia batendo.
− Vamos, minha filha! Levante-se! Não pode ficar o dia todo deitada em cima de uma cama! Tenha fé! − aconselhou sua mãe Marta. − Arrume-se e vamos para a igreja. É dia de rezarmos por quem já não está conosco.
Olívia se levantou e caminhou em direção ao berço.
− O que vai fazer? − questionou Marta.
− Vou dar de mamar para minha filha. Não vê que ela já começou a resmungar?
Marta respirou fundo.
− Que seja! Mas depois iremos para a igreja. Está me ouvindo?
− Está bem, minha mãe. Está bem!
Olívia pegou sua bebê no colo e deu-lhe de mamar. Ter forças para se levantar era sempre uma guerra para ela. Por falar em guerra, o conflito entre os reinos prosseguia. Os reinos de Lume e Torim eram governados por dois primos: os reis Augusto Vital e Basílio Lecce, respectivamente. Os dois monarcas não compartilhavam apenas laços sanguíneos, mas também a sede pelo poder. A desavença entre as monarquias começou quando descobriu-se ouro em um local próximo da península, chamada Ilha dos Nativos. A descoberta fora feita por um desbravador de Torim. A proximidade do local com Lume, porém, facilitou que Augusto fizesse a primeira grande excursão para povoar a Ilha, motivo pelo qual a guerra fora declarada por Torim.
Os reflexos da guerra podiam ser sentidos em Lume. A maior parte da população jovem da cidade era composta por mulheres, já que uma porcentagem significativa dos homens foram obrigados a partir para a batalha. Isso fez com que a estrutura social de Lume se modificasse drasticamente durante os anos de guerra. A economia do reino ficou bastante voltada para a produção bélica, reduzindo significativamente a produção de alimentos, o que foi sentido não apenas na população pobre, como também, ainda que em menor escala, na classe média do reino, da qual Olívia e sua família faziam parte. Com o aumento da pobreza, vieram também as doenças, que aumentaram ainda mais o sofrimento daquele povo.
"Na guerra não há vencedores". Essa era a máxima que os moradores do reino podiam sentir na pele. Se não havia vencedores, era claro quem eram os maiores derrotados de todo esse conflito: o povo. Lume sofria a olhos vistos.
− Vamos, Olívia. Já está quase na hora de irmos.
− Mamãe, a senhora sabe bem que hoje não é um bom dia...
− Olívia, minha filha. É sempre um bom dia para agradecer à Deus pela nossa saúde e pedir para que Ele olhe por aqueles que amamos − disse Marta. − Não perca as esperanças! Não perca a fé! Acredite que ele voltará!
Apesar disso, a cada dia que se passava, a chama de esperança de Olívia em encontrar o seu amado vivo ia se apagando.
Olívia arrumou-se, assim como à sua filha. Caminharam em direção à igreja. A esposa de Rômulo, em uma fúnebre coincidência, vestia-se quase totalmente de preto. Seus olhos, marejados, pareciam com os de uma viúva. Mas as dúvidas ainda persistiam. Onde estaria seu marido?
Segurando a bebê em seu colo, ela entrou na igreja, não sem perceber os olhares de boa parte das pessoas em sua direção. Ela não entendia ao certo o motivo de ter tomado a atenção de quase todos. Parecia que a tragédia de não saber se seu marido vivia atraía a curiosidade do moradores do reino, e isso a deixava ainda mais incomodada.
O padre iniciou a missa.
− Estamos aqui reunidos em nome de Deus para relembrarmos nesse dia daqueles que já se foram. Nesse Dia dos Mortos, rezaremos pelas almas dos que não habitam mais nosso plano. Fechem os olhos. Mentalizem seus entes queridos. Iniciaremos a Santa Missa com um Pai Nosso em homenagem a todas as almas de nossos entes e amigos queridos.
Toda a assembleia iniciou, junta, a oração.
"Pai Nosso, que estais nos céus. Santificado seja...
Enquanto a principal reza cristã era entoada em uníssono, Olívia finalmente tomou sua decisão. Ela rezaria por Rômulo. Olívia rezaria pela alma de seu marido.
"...Venha a nós o Vosso reino. Seja feita..."
Rômulo estava morto, ela decidira. Que sua alma encontre a paz, ela desejara. Mas, em seu intimo, Olívia desejava também outra coisa.
"...O pão nosso de cada dia nos dai hoje, perdoai as nossas ofensas assim como nós..."
No Dia dos Mortos, segundo a tradição, as almas tinham a permissão divina para visitarem seus entes queridos. Olívia desejava também que a alma de Rômulo lhe fizesse uma visita. Que se despedisse. Desejava a oportunidade de olhar no fundo dos olhos de seu marido e lhe dizer pela última vez o quanto ela o amava.
"...E não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal. Amém."
Enquanto a missa acontecia, Olívia conseguia apenas mentalizar seu desejo. Havia realizado uma prece de forma tão intensa apenas quando sua filha ficara tuberculosa. Naquela época, Deus atendeu ao seu pedido e salvou sua pequena. Agora não seria diferente, acreditava. Olívia sabia, em seu intimo, que Deus permitiria a visita. Ela estava aberta para receber a visita da alma de seu marido, preparada para seu último adeus. Olívia queria também que Rômulo conhecesse a filha da qual ele não teve a chance de conhecer.
A missa chegara ao fim. O caminho de volta para casa também. O dia passou rapidamente. A noite já se findava. Olívia despediu-se de sua mãe e colocou a bebê em seu berço. Seria esse o fim? Mesmo pedindo tão intensamente, Deus não permitiria que a alma de Rômulo lhe visitasse? Uma lágrima escorreu por sua face, seguida de outras tantas. Ela já havia sofrido tantas perdas. Primeiro, seu marido fora para a guerra e nunca mais voltou. Um ano depois, seu pai falecera vítima de tuberculose, doença da qual toda a família havia adoecido. Sobraram apenas as mulheres. E, agora, mais uma negação. Queria Rômulo só por mais alguns instantes. Mas isso também não parecia ser possível.
Olhou para o relógio que a vela de seu quarto iluminava. Faltavam quinze minutos para o fim do Dia dos Mortos. Com isso, uma parte dela também estava para morrer. As esperanças de Olívia sumiam a cada segundo que o relógio ficava mais perto de marcar um novo dia.
Conformada com a negação divina de sua prece, ela colocou seu rosto no travesseiro e gritou. O grito, molhado por sua lágrimas, saíra abafado. Mas seu desespero poderia ser sentido, caso alguém estivesse naquele cômodo.
− Por que chora tanto, meu amor?
O corpo de Olívia se arrepiou. Estariam seus ouvidos lhe pregando uma peça? Ela retirou seu rosto de dentro do travesseiro e olhou para trás. Viu seu amado. Tão bonito quanto da última vez que o vira. Sua alma estava lá, atendendo ao seu pedido.
− Rômulo? É mesmo você?
− Estou aqui, minha querida. Vim lhe dizer adeus.
− Você veio, meu amor!
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O Regresso da Alma
Misteri / ThrillerMenção honrosa no 6º Concurso de Suspense promovido pelo perfil @SuspenseLP É noite do Dia dos Mortos no Reino de Lume. Olívia decide rezar pela alma de seu marido. Ela, porém, não sabe exatamente se Rômulo está morto ou não. Três anos após ter part...