Capítulo 1

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"Ter um irmão é ter, pra sempre, uma infância lembrada com segurança em outro coração".

Tati Bernardi 


Eu sou youtuber. Muita gente ainda dá um sorriso que termina em ponto de interrogação quando eu respondo o que faço. Aí eu completo que tenho 4 milhões de seguidores. O ponto de interrogação aumenta. Para simplificar a explicação, posto vídeos de assuntos diversos em uma rede social, e muita gente os assiste. Sou uma influenciadora digital.

Minha trajetória como youtuber tem um divisor de águas de um tamanho que eu não sei medir; o classifico em dois períodos: o antes e o depois da cicatriz. É isso mesmo, tenho uma cicatriz no meu rosto, nada modesta, confesso. Tenho outra, das grandes e purulentas, na alma. Mas ambas estão em tratamento. E, no final das contas, é isso o que importa.

Preciso contar como esse risco, que nem sempre existiu, veio fazer morada em cima da minha sobrancelha direita e se estender até o lado esquerdo do meu queixo. Para isso, terei que adentrar em uma das maiores perdas da minha vida, terei que cutucar uma área sensível dentro do peito com agulha de ponta quente e não esterilizada. Precisarei falar da morte do meu irmão. Quero deixar algo bem claro: eu amo meu irmão, mas isso não foi o suficiente para ele não partir. Nunca é.

Lembro nitidamente do carro luxuoso, de um cinza-fosco, vindo em minha direção. Me senti assistindo a uma cena cinematográfica, em que o ator precisa de um dublê para o acidente de carro, tudo muito ensaiado para a cena ficar perfeita. Só que era real. Estava para ser lançada por cima do capô do automóvel, quando um braço magrelo e esbranquiçado se posicionou na minha frente e me empurrou para o lado, salvando a minha vida.

Cheguei a ver as veias azuladas daquele braço, que havia me enlaçado por anos, em momentos de carinho e de brigas, quando rolávamos no chão na disputa por um brinquedo, ou mesmo quando ele caçoou de mim porque comecei a usar sutiã, mesmo sem ter o que ser sustentado pela peça íntima. O dono desse braço com pouca carne é do meu irmão, o Enzo. A propósito, eu sou a Maya.

Eu também fui atingida pelo carro, mas como ele me empurrou, apenas a lateral do automóvel tocou meu quadril; fui lançada para o lado, meu rosto se chocou com uma lixeira de rua. Meu olhar ficou turvo pelo sangue que jorrava, mas não me impediu de ver meu melhor amigo, já sem vida, do outro lado da rua.

Naquele instante, eu desejei estar no lugar do Enzo. Não conclua que foi um pensamento soberano e sem um pingo de egoísmo da minha parte. Apenas não queria sentir o que eu estava sentindo, uma dor fina, que transpassava o coração e que parecia ter resolvido se instalar em meu peito, com direito ainda a fechar minha garganta, como um nó que nunca poderia ser desatado. Confesso que, às vezes, ainda sinto as faíscas de resquícios dessa dor, sinto partes desse nó de marinheiro, exato e difícil de se desmanchar.

E ele se foi, no meu lugar. Foi como o meu dublê da vida real, voando a metros e se quebrando todo no asfalto de uma rua ferrada. Minto, de uma calçada. Uma porcaria de calçada ferrada. Nunca me esquecerei do barulho de seus ossos sendo espatifados. Não há como esquecer algo assim.

Tudo parecia perfeito demais em minha vida antes desse acidente. Eu era admirada e até mesmo amada por milhões de pessoas. Eu tinha uma voz. Eu conseguia alegrar a vida de muitos com meus vídeos, dava conselhos amorosos, falava da minha rotina de saúde e de beleza. Não venha com julgamentos de que uma youtuber somente traz à tona assuntos banais e artificiais.

Você pode ser um profissional banal em qualquer setor, depende de como você exerce isso. Pode ser uma professora que não se importa com um aluno com dificuldade de aprendizagem, que senta isolado no fundo da sala. Pode ser um médico que, por desleixo e falta de atenção, deixa um bisturi dentro do paciente e depois dá pontos mal feitos na carne do mesmo.

Degustação - A youtuberOnde histórias criam vida. Descubra agora