A Alegria na ausência
Num dia claro e ameno, ergueu-se o rei; aborrecido, como sempre acordava, pois não conseguia apreciar o albor do dia, não se sensibilizava com as borboletas do jardim da alvorada, nem com os pássaros que cantavam canções aprazíveis; mais ainda chateado por que aquele dia seria longo, cavalgaria ou seria conduzido a outra cidadela, ao leste de seu reino para os julgamentos em série de rufiões, assaltantes, estupradores, culpados e outros nem tantos. Gostava apenas de ficar sentado em seu trono aurifulgente, articulando suas ordens torpes a qualquer subordinado que via em trabalho duro.
O rei era odiado pela maioria, que se perguntavam o porquê ele se tornara rei, “Para infernizar nossas vidas e encurtar o resto que sobra delas”, pensavam muitos. Normalmente não gostava de companhia alheia, ao que a viajem tornava-se ainda mais terrível, pois o acompanhavam pessoas do convívio não aristocrata, a não serem os dois cavaleiros que o seguiam a fazer sua guarda, como nobres do império. Agarius era o seu nome; um rei obstinado ao poder e que o usava de forma irregular. O povo o odiava, não tinha mulher, apenas filhos bastardos que tivera com meretrizes.
Ao levantar-se naquele dia, esticou a cortina da janela que dava para a alvorada, depois abriu as portas do grande quarto e já foi dando ordens a quem passava pelo corredor. “Preparem meu banho”, “Prepare a carruagem”, “Prepare meu desjejum”, “Que diabos, preparem minhas roupas”, disse ao perceber que estava apenas de cueca pelos corredores do palácio.
Tinha ele uma barba cheia e ruiva, uns quarenta e cinco anos lhe assomavam e estava subindo de peso a cada dia e chegava a punir até mesmo as cozinheiras, pois para ele, estavam elas o engordando.
Depois de seu banho, em sua banheira de ouro, dirigiu-se ao altar do salão e sentou-se no trono, em pleno salão vazio e foi servido pelas cozinheiras, que com olhares baixos temiam retaliação. O rei apenas as olhava com olhos austeros, encarando seus medos e quando elas iam saindo, o rei gritou: “Parem! O que pensam que eu sou, um periquito, para virem com alpiste regado, enquanto morro de fome?”, dizia ele das quatro coxas de frango, servindo com batatinhas ao molho, um prato de arroz, um peixe frito e frutas frescas. Uma das cozinheiras implorou clemência, dizendo: “Perdão, senhor, mas como o senhor sempre reclama que está engordando, tiramos do cardápio o guisado de javali...”, disse ela e ele interrompeu com um grito, “Silêncio!”, ao qual ecoou em todo o salão e as pernas das três começaram a tremer e uma delas começou a choramingar.
– Ontem, ordenei que soldados fossem caçar Javali para que eu pudesse comer desse guisado! – disse ele, enquanto se aproximava delas. – Eu esperava acordar hoje e que as coisas estivessem como eu desejava, mas vocês, meus servos, não conseguem, se quer, agradar o seu rei! – titubearam as três e uma delas desmaiou sobre a outra, com a pressão psicológica causada pelas ordenanças de Agarius.
– Droga! Tirem-na daqui! – ordenou o rei e elas saíram, carregando a outra que desmaiara. – Fill! – gritou Agarius e logo apareceu um jovem, vindo alvoroçado aos tropeços com um cântaro sobre as mãos. – Vamos, sirva-me um pouco de vinho, talvez seja disso que preciso para me acalmar – disse, sentando-se novamente no trono e erguendo uma taça de cristal, ao que o jovem a encheu de vinho. Quando deu um gole, cuspiu a bebida.
– O que é, todos resolveram me sabotar essa manhã? Que merda de vinho é esse, seu moleque! – gritou ele com o garoto que estava temeroso. – De que lagar é essa porcaria? – perguntou ao copeiro jovem.
– Estava na adega, senhor, é da safra que veio do sul, pelos seus mercadores – respondeu o jovem, gaguejando.
– Não sabia que o povo do sul amassava a uva com o traseiro! – disse ele. – Diga aos mercadores que não me tragam mais vinho do sul, se quiserem viver. E você, da próxima vez que me servir algo assim de novo, vai se arrepender! Ouviu? Agora vá! – disse o rei aborrecido e o jovem respondeu-o, “Sim, senhor!”, Temendo e saiu, às pressas. Nessa hora entrou um servo com uma manta sacerdotal e fez reverência.
– Meu senhor, sua carruagem está preparada para a viagem – disse ele.
– Ah, que ótimo! – disse o rei em sarcasmo. – Chame para mim o Menestrel e me tragam o prisioneiro! – ordenou Agarius e o sacerdote saiu depois de mais uma reverência. Abocanhou uma das coxas de frango, com olhar austero e semblante aborrecido.
Logo as grandes portas do salão se abriram e surgiu um homem de casaca verde, curta na frente, à altura da cintura e com as abas compridas atrás; era alegre e vinha ao rei, proferindo rimas, numa dança estonteante.
– O rei me chama em seu trono dourado, vejo por alto que se encontra estressado? – disse ele se aproximando e reverenciando, à presença do rei.
– Menestrel! Sim, talvez seja disso que me falta nesse dia horrível! Uma boa canção, uma boa história! Você me acompanhará na viagem ao leste, aguarde junto à carruagem! – ordenou ao Menestrel.
– Será uma honra servir e tornar o seu dia mais feliz! – disse numa outra reverencia e se retirou.
Com um tempo, abriram-se novamente as portas do salão e dois soldados do império apareceu, um deles puxava um prisioneiro por correntes em suas mãos e nos pés calcetas, que o encurtavam os passos. Era um homem sisudo, com vestimentas de pano de saco; tinha cabelos negros e sua aparência era jovem e peculiar; seus olhos estavam baixos, pois há muito tempo esteve em uma prisão escura. O soldado foi o conduzindo até a soleira do altar, onde se assentava o rei Agarius. Seu olhar era severo ao prisioneiro e sua presença o enojava. O soldado o pôs de joelhos, a reverenciar o rei.
– Então... Ouça-me prisioneiro! Hoje o meu dia não está sendo o dos melhores; cortaram minha comida, me trouxeram vinho azedo, o universo conspira contra mim e hoje, por sua causa, tenho que viajar só pra ver sua cabeça numa estaca, o que não seria problema para mim, pois poderia resolver isso agora mesmo! – disse o rei em alvoroço. – Mas, sua cabeça deve ficar no pescoço, pois Tyron, senhor do leste, assim o deseja! Você pode agradecê-lo, enquanto ele corta a sua cabeça! Mas também exige que eu o conduza até ele... Obrigado pelas honrarias! – disse o rei, se curvando e sendo, como sempre, sarcástico. Depois, deu um grito de raiva e desceu as escadas do altar do trono e ergueu a cabeça do prisioneiro que estava baixa, todo o tempo.
– Eu estou falando com você! Olhe para o seu rei quando ele lhe dirigir a palavra! –gritou Agarius. O prisioneiro levantou o olhar que estava surrado e olhou fundo nos olhos do rei.
– Um rei de verdade nunca condenaria um servo fiel! – disse numa voz rouca.
– Servo fiel? – riu o rei. – É fiel ao seu rei roubar... – antes que Agarius terminasse, o prisioneiro ergueu a voz em objeção.
– Minhas filhas passavam fome, em virtude da prepotência do rei, que só se importa com o próprio umbigo... – o soldado ao lado, lhe deu um soco no rosto e ele caiu. O rei olhou para o soldado e lhe disse: “Da próxima vez, eu vou te socar!”.
– O seu povo padece, muitos passam fome, o seu reinado cairá, com o seu orgulho... – disse o prisioneiro ao chão.
– Antes que o meu orgulho e meu reinado caiam, terei a honra de ver sua cabeça cair primeiro! Tirem-no daqui antes que o faça eu mesmo! – ordenou e os soldados o levaram para fora.
Ao passar de uma hora e após ter conseguido terminar o desjejum, sem mais nenhuma interrupção, resolveu, em fim, partir. A carruagem estava pronta no circulo da alvorada, dois cavalos a puxavam e um cocheiro o guiava. Os dois soldados montavam cavalos e lhe acompanhavam à sua guarda; um deles segurava as correntes do prisioneiro, que estava ao solo, maltrapilho. O Menestrel, ao flanco esquerdo da carruagem aguardava o rei e o copeiro de Agarius conduzia um pônei cargas de vinho, para servir o rei na viagem.
O povo, sabendo da partida do rei, juntavam-se nas ruas para vê-lo sumir de suas vistas. O reino ficava sobre o domínio dos conselheiros do rei, que por mais que ruim fossem, ainda eram melhor que o rei Agarius, como pensava, muitos.
Agarius, sobre a carruagem, sempre aborrecido, estava ao lado do cocheiro na caleche. Olhava os que lhe acompanhavam e se enraivecia. Desceu a rua principal do reino, onde o povo se assomavam. O povo ria e o saudavam com aplausos. “Vejam como amam o seu rei”, disse ele a si mesmo. Mas a alegria da população era com sua partida, pois por alguns dias ficariam sem sua odiável presença, o que queria dizer um pouco de paz. O rei passava e era ovacionado com gritos eufóricos de “Uhas” e “Viva”; “esse povo sabe bem interpretar”, disse o copeiro ao Menestrel, baixinho. E foi assim, até a comitiva do rei dobrar a curva da alameda sul e se perder de vista de todos. Houve muito alarido e alegria, o que acompanhou uma celebração.
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Entremundos - O rei e o Prisioneiro
PertualanganUm rei odioso e totalmente intransigente tem que viajar com uma comitiva de plebeus e conduzir um prisioneiro até outra cidade, mas no meio do caminho uma coisa atípica acontece e a partir daí muitos aprendizados começam a acontecer.