Sendo caminho para quem estivesse indo para o litoral de São Paulo, Campos de Cordeiros era bem conhecida por fazendas de tirar o fôlego e uma área central bem conhecida pelo comércio diverso. Não era subitamente reconhecida como a melhor cidade para se morar, mas também não era a pior. Tinha uma taxa criminal bem abaixo da média e era destino certo para casais de aposentados acostumados com a cidade grande, mas que precisavam de um lugar mais tranquilo para passar o resto de sua vida.
Karina Cavalcante adorava a cidade e sempre estranhou a vontade de seus amigos de irem embora dali quando se formassem. Ela tinha uma estranha conexão com o lugar, como quando uma criança persiste o máximo que pode com uma mantinha de quando era bebê.
Por isso, após outro extenso dia de aula, ela apreciava a vista enquanto ia embora para casa. Andando, mas sem deixar claro que estivesse gostando daquilo.
— Meus miolos estão estourando — reclamou. Ela e seu melhor amigo atravessavam a principal avenida da cidade, a Quinta Avenida, enquanto voltavam da escola. Por algum motivo Sheila não a buscou naquela tarde, e se Karina bem conhecia sua irmã, tinha certeza de que ela estaria presa no trabalho.
— A gente acabou de sair, Karina, e nem está tão Sol assim — suspirou Bruno. A cada três passos o adolescente conferia o telefone.
— A Sheila me paga! — Continuou dizendo. — Eu sou uma princesa! Quando você viu uma princesa andando nesse sol de fritar ovo no asfalto?
Bruno ignorou a ironia e prosseguiu andando.
— Pega leve com a Sheila, afinal de contas ela não tá vivendo o sonho dela?
— Não sei onde! Um estágio num escritório de advogado? Quer dizer, eu imaginava ela super poderosa no tribunal e tal..., mas não — ergueu os braços. — Ela se contenta com uma simples recepção.
— Ela tirou a OAB ontem, gata. Dá um tempo que logo ela vai ser mais poderosa que Annalise Keating.
— Assim espero. Nem meu pai pôde vir hoje. Ultimamente ele anda tão esquisito...
Repentinamente o celular de Bruno tocou. Depois de alguns segundos ele se despediu e voltou na direção oposta. As ligações misteriosas estavam deixando Karina de cabelo em pé. Bruno não escondia nada dela.
Ao se aproximar de sua casa ficou um tanto inquieta ao ver uma caixa de papelão parada de frente ao seu portão. Entretanto, observando melhor, notou um papel amarelado colado na base superior da caixa. Lá havia um nome conhecido por ela: Roger Cavalcante.
O que o nome de seu pai estaria fazendo naquela caixa estranha? Pensou em levá-la para dentro, mas a curiosidade de Karina sempre falava mais alto. Abriu a caixa ali na calçada mesmo. Um fedor insuportável atingiu suas narinas quando aproximou o rosto no interior da caixa. Pegou sua blusa de frio na bolsa e colocou no nariz para bloquear — ou tentar — aquele cheiro horrível. Olhou seu interior e se chocou com o que encontrou ali dentro.
Uma rosa. Ou melhor, o que parecia ser uma rosa. Havia partes brancas e uns salpicados de um líquido viscoso vermelho. Um nome veio à sua mente.
Augusto Ferreira.
Karina bufou, perplexa pela petulância do rapaz. Claramente aquilo era obra de seu mais novo vizinho.
Um mês antes, Augusto havia se mudado para a casa da frente. Virou assunto na vizinhança rapidamente, já que era bonito e charmoso. Todas as senhoras de idade paravam na frente dos portões para apreciar o rapaz lavando o carro de seu tio todo fim de semana. Karina não ficou de fora, mas se sentiu incomodada quando ele começou a dar em cima dela de um dia para o outro.
Não que ela não o achasse bonito, longe disso. Mas se envolver com homens mais velhos estava longe de ser algo moralmente aceitável para ela. O que mais via eram colegas de sala em relacionamentos perturbadores com homens mais velhos. E ela conhecia o modo de agir deles.
Dias antes, Augusto havia presenteado ela com um buquê de rosas, juntamente com um convite para sair. A adolescente gentilmente recusou, chegando a ficar um pouco irritada com a insistência vinda dele. Aquilo claramente era um sinal de que a caixa havia sido deixada por ele. Uma forma bem mórbida de vingança, e ainda envolvendo o nome de seu pai.
De relance, Karina olhou para a lixeira comunitária no final da rua. Um sorriso surgiu em seu rosto.
De forma desajeitada, colocou a caixa nos braços e desceu a rua íngreme em direção a lixeira, de forma bem rápida, quase chegando a tropeçar. Abriu a tampa equilibrando a caixa na outra mão, até o momento em que apenas virou o objeto dentro do recipiente.
Quando tivesse a chance diria poucas e boas para Augusto. Mas por enquanto havia se contentado em observar a caixa se despedaçando com a queda naquela lixeira.
[...]
— Filha, pode fazer a janta? — gritou Roger da cozinha enquanto digitava algo em seu notebook. — Pega o meu cartão e corre no mercado, pode escolher o que quiser.
— Claro pai, vai sair hoje? — ela indagou aparecendo no batente da porta. Notou um hematoma roxo no braço direito do seu pai, mas ignorou.
— Sim, a Cintia me chamou pra comer fora. — Deu um sorriso contido e estava levemente agitado.
Karina sorriu e se sentiu muito feliz vendo o pai se relacionando com alguém após sua mãe ter ido embora há tantos anos.
— A coisa tá séria mesmo hein!
— Vamos ver até onde isso vai. Cintia é uma pessoa maravilhosa... — Roger pensou um pouco. — Otávio igualmente.
— Pai, tô meio fora de garotos, sabe. Tenho outras prioridades no momento. — Ao ver a cara de chateado de seu pai, se corrigiu, apenas para momentaneamente deixá-lo menos preocupado. Otávio era legal, simpático, mas Karina não conseguia vê-lo com outros olhos, mesmo a vontade de seu pai sendo outra — Mas nunca digo nunca, né.
Roger deu uma risada constrangida, decidindo por hora não insistir no assunto. Prosseguiu:
— Vou levar algum presente simbólico pra ela, talvez um colar ou um par de brincos... Não estou indo muito rápido, né? — ele olhou para a janela, onde seu carro estava estacionado.
Karina sentou na bancada da cozinha, ainda boba com a ingenuidade do pai. Parecia um filho pedindo conselhos para a mãe para seu primeiro encontro.
— Ai que fofo pai, claro que não — Karina falou encantada —, mas quer uma dica?
— Claro, filha.
— Não leve flores, tá meio ultrapassado.
[...]
Cintia Garcia penteava seus longos cabelos ruivos, olhando fixamente para o espelho em sua frente. Nos auge de seus quarenta e cinco anos, Cintia possuía um corpo alto e magro. Sardas em seu rosto e pequenas linhas de expressão preenchiam o rosto da mulher.
— Tá gatona Cintia, vai sair, é?
Cintia riu da inocência de seu filho adotado. Otávio conhecia sua rotina de cabo a rabo. Se ela fosse se atrasar por causa de uma reunião importante ou por ficar presa no trânsito, o adolescente saberia. Otávio era tudo o que havia sobrado em sua vida. Cuidava do garoto desde os doze anos, e o considerava como seu próprio filho.
— Vou ver o Roger, querido. Não precisa falar como se não soubesse. — Piscou para o rapaz, voltando-se para o espelho rapidamente. — Hoje é um dia muito especial para mim e para você, então prometo voltar cedo.
— Eu sei, boba. Quatros anos tendo que me aturar — Tornou o adolescente. — Inclusive se pudesse, iria junto, mas vou deixar você aproveitar o momento. — Otávio digitava freneticamente em seu telefone. Ele então parou e a encarou, pensando se diria o que sua mente suplicava. — Traz um lanche pra mim na volta?
Cintia se levantou, pegou sua bolsa e as chaves do carro.
— Pode deixar, querido. — Deu um beijo na testa de Otávio, o deixando imerso em seus próprios pensamentos.
Ele manteve um sorriso sincero, ao ver Cintia sair em direção ao seu encontro. Estava verdadeiramente feliz.
Mas não disse o que ansiava.
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RASTROS DE SANGUE (ANTIGO DOCE OBSESSÃO - EM BREVE FÍSICO) - DEGUSTAÇÃO
Horreur🏆 VENCEDOR WATTYS 2020🏆 Campos de Cordeiros nunca foi conhecida por ser uma cidade violenta e marginalizada. Isso até um assassino mascarado passar a aterrorizar seus moradores, dando início a uma caçada sanguinária, onde o passado parece se mistu...