CRACK

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Na real, eu nem queria escrever sobre isso. Só o estou fazendo porque minha melhor amiga pediu.
Disse que me faz bem. Me alivia.
Acabei de ver uma pessoa bem próxima de mim drogada.
Sim, no fundo do poço mesmo.
Como me sinto?
Péssima.
Meu padrasto diz que minha mãe o trata como bebê e que, por conta disso, ele nunca se dá conta de sua situação muito, muito precária.
Minha mãe, por outro lado, diz que ele com certeza tem algum tipo de transtorno mental. Mente fraca.
Crack.
A pior das drogas.
Ninguém mais sabe quando ele está mentindo ou não, ou quando ele realmente quer nos ajudar. Ou quando só quer nosso dinheiro.
Para comprar drogas.
É difícil. É bem difícil.
Eu já escrevi sobre como não podemos ajudar pessoas que não querem ser ajudadas, mas este é um caso à parte.
E quando a própria pessoa sabe o que é melhor para ela e, mesmo o seu consciente implorando para que pare, seu corpo faz justamente o contrário?
Eu o vi trabalhando de verdade.
Eu o vi caindo.
Eu o vi colocando o nome da minha mãe e meu padrasto como "escudo" no beco.
Eu o vi vendendo o fogão, depois o telefone, depois o carrinho de churrasco, depois os materiais de jardinagem...
Eu o estou vendo no fundo do poço agora.
E eu o acabei de ver, às 1h da manhã, sentado em frente de sua casa esperando alguém trazê-lo o que tanto quer: sua válvula de escape. Seu crack.
Na verdade, nunca fomos muito próximos. Mas ele é sangue de meu sangue. Ele é irmão de minha mãe.
Só eu sei o quanto ela está sofrendo nessa história, com tantos indícios de que ele próprio irá cometer suicídio alguém dia e o quanto está passando fome e precisando de ajuda.
MAS ELE MENTE.
Ele não consegue parar de mentir e tudo aos poucos vira uma duvidosa bola de neve.
Meu tio não é traficante.
Ele é usuário.
Ele não rouba.
Ele vende tudo o que tem e, quando acaba, procura um emprego. Qualquer emprego.
Ou mente.
É difícil.
Não podemos dar dinheiro na mão dele, porque sabemos que não irá usar para comprar comida. Ele vai se alimentar. De outra coisa. Vai alimentar sua alma pela droga, porque, pelo visto, é tudo que ele acha que tem.
Acha, porque todos estamos à sua disposição. Estamos com ele. Estamos tentando ajudar. Estamos aqui, com o coração bem mais do que partido, porque paramos de dar comida para ver se então faria algo para consegui-lo pela própria sobrevivência.
Eu e minha mãe já percebemos.
Ele morreu.
Ele está morto por dentro, tanto espiritualmente quanto literalmente.
Está morto.
Acabou.
Não há mais jeito.
Se ele não morrer pela droga, morrerá pelos traficantes pesados com quem está se metendo.
Os usuários andam pelas ruas feito gatos abandonados. Miam pelos telhados dos amigos e parentes, pedindo comida, colo, conforto.
Mas mentem.
E mentem.
E ainda mentem mais.
A pior coisa de um usuário é que não sabemos quando está ou não falando a verdade. Do mesmo modo, eles só se dão conta de quão no fundo do poço estão quando se encontram sem a droga.
É uma dependência.
É a esposa dele.
E foi assim...
Quase sempre.
Meu padrasto diz que abrimos portas demais e que ele perdeu oportunidades demais. Que não merece segunda chance.
Mas todos merecemos.
Algumas pessoas precisam de mais ajuda que as outras e isso não as faz vagabundas. Só fracas. Miseravelmente dependentes de algo.
Precisam de uma força para viver, mesmo que essa força os mate.
Eu detesto pensar em como poderia ter sido se eu tivesse feito algo antes. Talvez falado uma palavra, um... "estamos todos aqui, está bem?". Mas eu não o fiz.
Eu não o fiz é preciso entender que isso não é culpa minha.
Espero que Deus me ajude agora. E o ajude.
Nunca fui tão cristã, então nem ao menos sei se Jesus atenderá minhas súplicas desesperadas.
Eu só o quero bem.
Eu só quero minha família bem.
Eu só quero que as coisas se resolvam.
Ele irá ser internado.
Minha mãe ligará para a clínica amanhã.
Que ele se recupere.
Que assim seja.
Amém.

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