Parte Três

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"Estou cumprindo ordens do alto".

As palavras do Arcanjo Miguel ecoavam em minha mente. Tudo começava a fazer algum sentido. Fui colhido pelo Criador para servi-Lo em algum desígnio, mas o que poderia ser?

A insegurança me fez pensar no que havia me tornado. Sou anjo ou demônio? Não faço parte do Plano Celeste e agora nem tampouco do Plano Infernal. Tornei-me um proscrito, entre dois mundos distintos.

A cidade se aproximava e com ela, também a fome.

As criaturas precisam de alimento para sustentar seus corpos neste desterro. Matéria sustentando matéria. Nunca em minha existência havia precisado recorrer aos alimentos, afinal de contas, de onde vim, a fonte de energia estava no amor. Após o exílio, perdemos a caridade divina e passamos a nos matar. Os derrotados serviram de alimento para aqueles que perduraram. Como éramos frutos de uma fonte de energia primordial, mesmo banidos, ainda tínhamos essa fração dentro de nós.

Os primeiros dias após o banimento, foram cruciais. A ausência da Caridade e a constante presença daquele que nos seduziu, nos remeteu ao remorso e ao rancor, convertendo tudo isso em profunda aversão a Deus. Contrariando os que me cercavam, transformei minha tribulação em arrependimento.

Lúcifer conseguiu reverter o nosso estado de euforia e paramos de nos matar. Se continuássemos, certamente nos aniquilaríamos, por isso, passamos a seguir um plano. O pecado do homem seria nossa fonte de calor, nosso alimento.

As criaturas também vieram de Deus, sendo assim, nos dariam sua parte da energia primordial.

Condenados ao Grande Lago de Fogo, os pecadores nos dariam sua energia, suficiente para nos manter vivos. Quanto maior a desgraça humana, mas força teríamos. Com o tempo, os Infernais aumentaram suas incursões neste plano, corrompendo a criação e alentando a Grande Fornalha.

A vaidade humana seria o fiel da balança. Depois que os Infernais perceberam que atacar a vanglória do homem seria o caminho, o mundo caiu em uma era de sombra e medo. A história está repleta de eventos destruidores. Desde os acidentes ditos naturais, passando por pestes e epidemias. Mas não havia fonte de alimento maior que a violência. O que mais personificava a bestialidade eram as guerras.

Os Infernais estiveram por trás de inumeráveis conflitos. Muitos eram tão ávidos pelos combates que chegaram a lutar ao lado dos homens, pelo simples prazer de matar. O Lago nunca ardeu tanto quanto no tempo das guerras. Os homens são levados ao extremo de suas forças e emoções, ficando altamente vulneráveis a sua desordem interior.

Eu mesmo estive em algumas missões, influenciando, manipulando e destruindo. As revoluções, as Grandes Guerras e as novas doutrinas mudaram o cenário do mundo, abrindo profundas cicatrizes na criação. Não escolhíamos um lado, uma bandeira, apenas a desordem importava para os Infernais. O caos nos mantinha vivos.

Nada disso importa mais. Tudo me parece distante agora.

Fui jogado no poço sem fim. Apesar de estar aqui, dentro de mim, sinto que ainda estou caindo, sem rumo, perdido.

Adentrei os limites da cidade. A terra do deserto deu lugar ao asfalto. O calor era tão intenso que o piche estava mole, derretendo. Pela posição do sol, deve ser tarde e o Astro Rei me castigava com sua força.

Andando pelas ruas pude notar os olhares. Para estas criaturas, não passo de um forasteiro, um estranho em suas terras. O semblante das pessoas mostrava resignação e tristeza, mas por quê? Pude sentir a energia negativa entranhada naquelas pessoas, mas com o tempo, percebi que a cidade inteira me passava um mal pressentimento.

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