HOLLEN - ANJO CAÍDO (1ª ed -2015 // 2ª ed - 2020) - LIVRO (capítulos iniciais)

Parte Dois

Ainda posso ouvi-los. A agonia daqueles que foram condenados ecoa em minha mente. Achei que neste plano estaria livre do que vivi no Cárcere Eterno, mas percebo que ainda estamos ligados.

Estou andando há bastante tempo, seguindo minhas intuições. A estrada começou a esfolar meus pés e passei a sentir calafrios que outrora não sentia. Acho que meu corpo está se adaptando a minha nova realidade. Os raios cortam o céu, vagueando entre as nuvens. O que me espera do outro lado da tormenta? O meu destino está incerto, e a todo o momento me pergunto por que fui colocado aqui.

Ainda estou nú, mas isso não me incomoda como aos humanos. Desde que o pecado original foi consumado, eles perderam a pureza. Naquele instante a serpente os enfeitiçou com seu veneno mortal, desordenando suas almas e atentando seus instintos. O casal primordial foi expulso do Jardim, lançado a própria sorte, em um mundo ainda primaveril.

Eu estava lá quando o plano foi arquitetado. A Guerra do Paraíso nos feriu profundamente, e estávamos preparando uma retaliação à nossa derrocada. O próprio Lúcifer se encarregou de corromper o primeiro homem.

Tudo aconteceu como planejado. Os celestiais não puderam intervir. O Criador, mesmo sabendo que algo aconteceria, esperou. Ele deu aos homens a livre escolha. Para Ele, infelizmente, a criatura escolheu a morte.

Raios cruzaram o céu. A noite por alguns instantes virou dia. O clarão, mesmo que repentino revelou algo a distância. Prontamente fui até lá para ver do que se tratava. Era um veículo, tombado e abandonado. Pela sua aparência, há bastante tempo. Toquei o veículo e pude sentir uma grande energia negativa. As informações não eram precisas, mas algo me dizia que uma tragédia aconteceu.

A porta estava entre aberta e ao ladeá-la, pude ver uma ossada no banco de trás. Não toquei nela. Continuei explorando o carro e ao passar pelo espelho vislumbrei rapidamente o meu reflexo. Voltei para ver com mais detalhes e notei que aquele não era o meu rosto. Minha essência se encontrava condicionada em um corpo que não era o meu, um avatar. Os anjos fazem uso dos avatares quando descem ao plano físico. Uma forma de camuflar nossa verdadeira natureza, ocultando inclusive nossas asas.

Passei alguns momentos encarando o meu novo rosto. O toquei levemente. Um rosto ainda jovem com traços fortes. Gostei do que vi, me fez esquecer um pouco o passado, dando-me esperança de um futuro melhor. O otimismo me tomou por alguns segundos, mas a realidade voltou a pesar com o som de mais um trovão serpenteando entre as nuvens. Esse foi bem forte. Olhei novamente para o céu e pude ver a lua, revelada parcialmente durante o deslocamento das pesadas nuvens. Apesar de densas não havia precipitação de chuva, como se aquele anuviamento tentasse me dizer algo, prenunciar o que estava por vir. Algo grandioso e igualmente perigoso.

O porta-malas estava aberto e dentro dele havia roupas. Para a minha sorte, algumas peças cabiam em meu corpo e as vesti. Senti o calor percorrer a minha pele e abrandar o frio noturno. Isso me gerou satisfação que logo foi esquecida quando mais ao longe percebi um segundo corpo. Tratava-se de uma ossada feminina, pois as roupas, sujas e rasgadas, me indicavam isso.

Alguns ossos estavam quebrados e pela posição do corpo, a criatura rastejou no momento de sua morte. Uma fuga desesperada e inútil naquele instante de agonia.

Passei parte de minha eternidade testemunhando a dor e a tortura. Esta condição deixou o meu coração duro, sendo assim, aquele cenário não me abalou por completo. Toquei na ossada, e percebei muita dor. Este mundo deixou de ser um lugar seguro. Levantei-me, seguindo minha marcha.

Por alguns momentos voltei a pensar na história daquele casal, e em que circunstâncias haviam encontrado seu destino na desolação do deserto.

O calçado apertava os meus pés e o percurso começava a me deixar afadigado. Não tinha ideia das horas de caminhada solitária, mas neste corpo, a fome e a sede começaram a limitar meus movimentos.