Parte Um

21.2K 395 114
                                    

Não lembro mais como tudo começou. O tempo não conta muito neste lugar. Nem a dor, antes latente, parece incomodar. Minha pele curtida não reclama, pois, a calidez das labaredas não queima como antes. Meus olhos perderam a vida e apenas vejo dor e remorso.

Tudo se esvaiu em uma mentira, consumindo nossas almas e nos sentenciando ao precipício eterno. Testemunho o lamento e as lágrimas, mas daqui a um tempo, nem lágrimas encontraremos, pois a brasa consome tudo. O enxofre apagou nossos sonhos, e em breve, tudo que um dia foi não será mais.

Olho para cima e não vejo o início, fito abaixo e não vejo o fim. Bem perto está o grande lago, ardendo, explodindo em lava e vapores. Os brados e rangidos ecoam por todos os recantos, mas os meus ouvidos não sangram mais com tamanha agonia. A todo instante, criaturas são levadas para o lago, e mais sofrimento alimenta este tanque de morte.

O mundo de hoje não acredita como outrora. As pessoas perderam a fé, e por isso, ao realizarem a travessia para a eternidade, se encontram perdidas e atordoadas; despojos para as almas condenadas.

Aprisionadas, são conduzidas para a tortura, muito mais, por nunca terem acreditado que este lugar pudesse existir do que pelos estigmas de seus pecados.

Ainda há tempo para todos escaparem deste abismo, mas como fazê-lo se o mundo caiu em desgraça?

Por um breve instante fechei os meus olhos imortais e pude retornar à aurora dos tempos. Um passado tão antigo que para muitos se perdeu nas brumas da apostasia. Vivíamos para amar a Deus e a servi-Lo. Para os anjos, bastava aquele imenso amor, incondicional e pleno.

Tudo estava em perfeita harmonia e o paraíso não sofria abalos, até o momento em que o Criador decidiu expandir Sua obra. Gerou mundos além do celestial, criaturas com alma, e dentre elas, uma que Ele amou com profusão. Esta criatura, esculpida do pó da terra se tornou a maior de todas as criações de Deus.

Um de nós tomou as dores de muitos e não aceitando ficar abaixo da nova criatura, alterou a história celeste para sempre.

Lúcifer foi gerado pela mão de Deus no primeiro dia da criação. Era um lindo Querubim, formoso e com um olhar penetrante. Deus o amava e sua aura era cheia de luz. O Querubim se recusou a prostrar-se diante do homem. Sua retórica era muito convincente, e sua língua, mais aguçada que a espada. Considerou que poderíamos restaurar a ordem original das coisas e passamos a segui-lo. Hipnotizados por sua malícia, o acompanhamos, até o dia da conflagração ante os exércitos do Arcanjo Miguel. Esta colisão ficou marcada como a Guerra do Paraíso.

Dois lados em uma batalha sangrenta. Um terço dos celestiais aderiu à campanha do Portador da Luz. Apesar da empreitada, nossa derrota foi iminente e depois disso, tudo mudou. Fomos jogados no reino dos mortos, no mais profundo dos abismos. Fomos exilados da presença divina, o pior dos castigos.

Os primeiros dias foram terríveis. O remorso era insuportável. Vivíamos atordoados pela nossa humilhação. Miguel se sagrou vitorioso ganhando posições hierárquicas importantes no plano celeste. Eventualmente o Arcanjo descia ao abismo para ter conosco. Na verdade, ele vinha nos vigiar, porque ele foi contra o exílio. Ele ansiava pelo extermínio.

Eras se passaram e o mundo outrora casto, foi corrompido e violentado. Não podíamos retornar a Casa do Pai, mas ferimos a criação. A alma dos homens foi corrompida, degradando parte da Grande Obra.

Passamos a viver entre os homens, alimentando suas almas com mentiras e vaidades. Como é frágil o gênero humano.

Não posso mensurar o meu arrependimento de ter acreditado em tantas mentiras. Estou condenado ao fogo eterno. Não percebi a astúcia daquele que prometia redenção, mas na verdade, nos usava para alimentar o seu ego e sua sede de poder.

De joelhos me prostrei diante do vazio. Ao levantar meus olhos contemplei a grande casa. A mansão dos mortos. Um lugar terrível.

Ele já esteve aqui. Adentrou aquela porta e permaneceu lá por três dias. Ninguém que lá entrou conseguiu sair, mas com Ele foi diferente. Saiu e tirou muitos de lá. Da mesma forma que conseguiu subir o abismo e deixar este plano. Eu O vi, e naquele instante, pude contemplar Sua face. Ele me encarou. Nunca esquecerei aquele olhar, sereno e ao mesmo tempo austero.

Depois daquele dia as coisas mudaram por aqui. Soubemos de uma nova aliança, perene, entre Deus e os homens, e que os celestiais teriam um plano que envolveria o retorno do Filho de Deus ao plano físico, e o aprisionamento daquele que nos enganou.

Mereço toda a condenação. Não irei lutar. Arrependo-me da guerra e lastimo pela minha morte. Lembrei-me das antigas orações e entoei cânticos ancestrais clamando por misericórdia. A todo instante elevei meus pensamentos na tentativa de romper o tecido que separa este plano da Morada Celeste.

Foram inúmeras tentativas, mas o meu clamor parecia não ter rompido o tecido, mas ecoado por todo o inferno. Fui perseguido e capturado, agora me encontro perto do fim. De joelhos, à beira do abismo, cercado por aqueles que outrora pelejaram comigo. As correntes apertavam o meu pescoço e punhos.

Minhas asas, enegrecidas, estavam quebradas. Não me restava alternativa, a não ser dar o passo definitivo. Antes disso, por um breve instante, pude ver Lúcifer, em seu trono, olhando fixamente para mim. Notei em seu olhar uma mansidão nunca vista. Como se no fundo de sua alma, também repousasse o sopro do arrependimento.

Após um breve silêncio, me lancei no abismo. Estava condenado a cair pela eternidade, a nunca tocar o chão. Uma queda livre.

Não havia mais tanto calor e pude jurar que cheguei a sentir frio nas profundezas do abismo. Nunca imaginei que chegaria aqui, mas no final das contas, estou purgando os meus pecados de alguma forma. Não mereço a salvação, apenas a condenação que foi prescrita.

Quando tudo parecia perdido, atentei para um pequeno facho de luz. A claridade elevou-se, sendo consumido por sua intensidade. A luz cegou meus olhos e sentidos.

Despertei assombrado. A luz do grande astro queimava meus olhos. Por um tempo não vi absolutamente nada diante de mim. Estava no chão. Como pude chegar até o solo, se fui condenado a cair pela eternidade? Instantes depois, minha visão foi restabelecida. Uma certeza eu tive, o lugar em que me encontrava não era o Sheol.

Ao me erguer, senti dores em meu corpo. Percebi que estava desnudo e sem minhas asas. Meu corpo estava frio apesar do calor intenso. Olhei adiante e vi uma estrada, que em linha reta parecia não ter fim. Ocorreu-me que deveria segui-la. Acreditei que o meu destino estava definido. Agora, não sei o que esta nova realidade me reserva, mas certamente tive uma nova chance. No horizonte, nuvens negras despejavam sobre a Terra seus relâmpagos. Algo está prestes a acontecer. Deveria ir naquela direção, algo me impelia neste sentido.

Ajudei a distorcer a criação, mas agora faço parte deste mundo. Algo me diz que este lugar será o meu Purgatório. Se um dia eu puder retornar ao Shamayim, esta realidade seria a meu grande martírio.

A estrada me conduzia para o desconhecido. Ainda reverberava em meus ouvidos o brado daqueles que foram jogados no grande Lago de Fogo. Não sou diferente daquelas criaturas. Aceitei meu novo destino e as consequências que dele hão de surgir.

HOLLEN - ANJO CAÍDO (1ª ed -2015 // 2ª ed - 2020) - LIVRO (capítulos iniciais)Onde histórias criam vida. Descubra agora