Alice pegou um copo de água no criado-mudo e bebeu dois goles apenas. Depois percebeu o corvo e fechou a janela antes que o bicho resolvesse entrar. Bobagem! Se ele quisesse, já teria feito. E, para ela que não sabia, aquele lá, de tanto rodear a casa, podia imitar o som de algumas palavras que a própria costumava dizer. Quando virou, viu a face pálida de olhos verdes já em pé.
Era uma criatura muito parecida com um humano, mas faltava-lhe sangue de verdade nas veias. Sei disso porque a jovem deu um grito tão desesperado que um quadro acabou caindo na cabeça do desconhecido da cor de alabastro. Ele desmaiou no mesmo instante. Para chegar até a porta, era preciso passar pelo corpo estirado. Como a curiosidade foi maior do que o medo, Alice se aproximou o bastante para ver o corte na testa do intruso. Tinta vermelha escorria no lugar da seiva. Descobriu pelo cheiro forte de caneta estourada.
Quem era? Ou melhor, o que era aquilo?
Ela alisou o rosto ainda desacordado e sentiu que a pele tinha textura de papel couché. Não havia mais dúvidas: algum portal mágico deveria ter sido aberto. E como era bonito! Deslizou o polegar como um leitor que se deleita ao folhear página por página de um bom livro.
Veja só você! Alice, aos quinze anos, estava prestes a viver a maior aventura de sua vida. Os olhos de vidro se abriram e o corvo jura ter ouvido o coração deles disparar assim que se viram – nunca duvide da audição de um pássaro negro.
- Quem é você? – a menina perguntou fascinada.
- Meu nome é Kabir... Como devo chamá-la?
- Alice...
- Alice! – exclamou, enquanto tentava se levantar com certa dificuldade – Que belo nome! – era visível que o desconhecido tentava ser cordial, mas a primeira impressão que ficou foi de um comportamento um tanto desajeitado.
- De onde você veio? Como isso pode ser possível? – procurou evitar toda a cerimônia.
- Minha nossa! Olhe para mim! Sou de papel! – riu, realmente achando graça.
- E isso é uma novidade? Olhe! Me diga! O que está acontecendo aqui?
- Ah, mil perdões! O mestre Ketut havia me dito, mas... é tão esquisito, sabe?
- Olha aqui! Esquisito é acordar no meio da noite com uma tempestade ensurdecedora, uma droga de corvo me espiando pela janela e um... um... um estranho de outro mundo dentro do meu quarto! Dá para me dizer logo o que significa tudo isso?
- Um corvo? Onde está? – gritou, correndo até o parapeito, mas não viu nada além de uma árvore frondosa que mal se mexia apesar do vento forte – Que falta de sorte! Esses animais são os únicos que viajam entre todos os mundos sem qualquer dificuldade. Era a minha chance de mandar um sinal de vida. Ei! O que está pensando em fazer?
- Se não responder minhas perguntas agora, eu vou molhar essa sua cara de papel e voltar a dormir! Quem sabe não estou apenas sonhando? Veremos se esse rosto bonito se despedaça ou não com um golpe de água! – ameaçou, mas duvido muito que teria cumprido.
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Coração de papel
Short StoryImagine você acordando no meio de um tempestade com um corvo lhe espiando pela janela. Ele é a única testemunha. Há uma criatura de mão nevada e olhos verdes no seu quarto. Não é uma história de terror, mas bem que poderia ser. Um portal mágico foi...