Maria Madalena

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Era 22 de julho, fim de semestre da faculdade, e encontrei meus amigos depois da última aula da manhã de terça-feira. Débora e João pareciam radiantes, embora os desafios do encerramento do período fossem algo a usurpar o descanso de qualquer um. Nos dirigimos ao um dos bares que reuniam praticamente todos os dias, uma boa quantidade de pessoas, em sua maioria, estudantes. Sentamo-nos nas cadeiras amarelas de uma empresa de cerveja, e chamamos o garçom que já era um grande conhecido nosso, devido a frequência que íamos ao local para conversar sobre nossos relacionamentos frustrados, as decepções acadêmicas, mas também nossas aspirações afetivas e nossas expectativas para o futuro, além de conversas mais banais, como qualquer jovem comum faz hoje em dia. Embora, nossas reuniões sempre fossem acasos que por fim, adquiriam um motivo importante, talvez beber num dia de semana fosse algo a se repensar.

O dia fazia calor, e pedimos uma cerveja para acompanhar nossos aclamados e valorosos diálogos, que despertavam mais endorfina do que qualquer droga sintética. Débora solicitou ao garçom que tocasse Alucinação de Belchior, em seu rádio, já um pouco velho, que emitia um som rouco e falhado, nos causando nostalgia de épocas que não vivemos, mas gostaríamos. O vento soprava meus cabelos cacheados castanho-claros, que necessitavam de um novo corte urgentemente, assim como as grandes e belas árvores, vez ou outra, precisavam ser podadas, para que sua beleza fosse mantida.

Em meio a tudo isso, o clima convidativo que se criara naquele ambiente, fazia com que mais pessoas chegassem no local, de caráter simples e acolhedor, até que notamos um casal jovem, que chegara em meio a tantos outros – um rapaz e uma moça branca, ambos, aparentemente, com idade entre vinte e vinte e três anos, o primeiro mais alto e de cabelo curto e preto, e a segunda, um pouco mais baixa que o rapaz, e de cabelos longos e loiros. Os mesmos sentaram-se em uma das mesas frente a nossa, e cumpriram o mesmo ritual de chamar o garçom e pedir uma cerveja. A moça encheu os copos, e o casal começaram a expelir palavras que denunciavam o início de um diálogo qualquer.

Continuamos a conversar, quando percebemos uma senhora negra, com cabelos crespos amarrados com uma liga fina e desgastada, vestido longo e florido, adentrando no ambiente. A mesma estava descalça e passeava de mesa em mesa pedindo algo que até então não tínhamos conhecimento. Muito provavelmente não teria mais que quarenta anos – a idade da nossa professora mais nova de curso –, mas a pobreza e o sofrimento entranharam no seu corpo de tal maneira a envelhecer sua pele e desgastar sua aparência. Como algo rotineiro, a mesma desviava das mesas que não lhe davam atenção, com a habilidade de quem já se encontrava calejada de tantas respostas negativas, desde sempre. Até que a senhora, chegou a mesa do casal no qual notamos anteriormente, e pediu alguma contribuição para a sua alimentação, e de seu marido, que se encontrava no outro lado da rua segurando uma enorme carroça, cheia de resíduos e outros objetos recicláveis, e para seu filho, que estava deitado dentro do carrinho de reciclagem, agonizando com um dos braços deslocados, devido a um acidente num dia maçante de trabalho. O rapaz, como reflexo, bebeu um gole da cerveja que já se encontrava quente, e fez sinal negativo com a cabeça. A senhora, num processo automático, no ato de se locomover de uma mesa para a outra, acabou por esbarrar em um dos copos que caiu molhando a moça que estava com os olhos vidrados na tela do aparelho celular.

– Ridícula! Presta atenção nas coisas a sua volta!!! – Gritou a moça, enquanto se levantava para se limpar.

A senhora, que ficou com mais líquido nos olhos, do que qualquer copo daquele bar, ergueu seu vestido simples e florido até a altura da cocha, e passou sobre a mesa de plástico, enxugando toda a cerveja derramada.

– Eva, você viu isso?! – Perguntou João. Não hesitei em chamar aquela senhora até nossa mesa. Seu semblante irradiava uma tristeza tão profunda, e em contrapartida uma inocência, que não fazia sentido, por conta de todas suas experiências de vida, que lhe davam uma bagagem para suportar coisas ligeiramente piores, como a fome e a precisão. Pedi um abraço a ela, pois foi a única coisa que veio no meu coração naquele momento de manifestação de humildade. É como se eu quisesse agradecê-la por sua existência, embora sofrida, mas que fez tanta diferença para mim naquele dia de fuga da minha realidade.

– Estou suja e fedendo minha fia – falou ela, com uma voz quase abafada e rouca, como o rádio que continuava a embalar aquela cena, que parecia mais um filme, sem final feliz para a mocinha da história.

Abracei-a com toda a força que pude, como se quisesse sentir sua alma grudar no meu corpo. As lágrimas foram consequência do quanto aquilo tinha me tocado. As emoções talvez estivessem potencializadas pelo álcool, mas somente eu, meus amigos e a senhora se encontravam aos prantos, em meio a toda aquela gente que emitia uma cara de incompreensão e desprezo ao observar a situação. Soltei o seu cabelo, semelhante ao meu, e passei minhas mãos sobre sua pele, igual a minha, acariciando-a até que meus dedos pousaram sobre seu rosto singelo e fraterno, que estava úmido como seu vestido, do qual eu só pude extrair uma frase.

– Você é uma mulher sobre-humana.

A senhora apenas olhou no fundo dos meus olhos, como se enxergasse o que há de mais profundo nas entranhas da minha personalidade, como se despisse minha carne dos desvalores presentes em todo ser humano, e trouxesse à tona o que há de melhor em mim, agradeceu, e em seguida saiu ao encontro de sua família. Os três, e sua carroça, se misturaram com os carros na rua, até que os perdi de vista, daí pude notar, que nada na vida acontece por acaso. 



Desde já agradeço pela leitura e se estiverem gostado, favoritem com a estrela, comentem e adicionem a lista de leituras – assim, vocês estarão incentivando um escritor. Estou aberto a elogios e críticas, sejam quais forem. 


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