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O ano era 1886.

O cheiro daquela terra incomodava Sebastião. Ele não desejava nem um pouco estar naquele local, mas aquilo tinha que ser feito, não tinha? Sebastião sabia que, como encarregado da fazenda, era seu dever acompanhar de perto todas as tarefas que os escravos realizavam. Ainda mais quando a tarefa era algo daquele tipo. Aquele cheiro de terra trazia à lembrança de Sebastião a inevitável chegada da Morte. Ele até podia sentir a presença Dela, erguida ao seu lado, pronta para levar o espírito imundo do escravo que já preencheu aquele corpo vazio enrolado em um pano, que agora nada mais era que uma casca. Para ele, a Morte parecia algo palpável, amigável para com ele, já que Sebastião era responsável por encaminhar muitas almas para o Inferno.

Mas a Morte não iria embora até o espírito sair do corpo, talvez por isso a terra o incomodasse. A terra é que separa a alma do corpo. A terra. Quando finalmente o corpo é depositado na cova, a terra cobre o que antes era uma vida, tirando todo o peso que prende a alma a este plano de existência. Sebastião pensou que se o espírito não quisesse sair do corpo a Morte o arrancaria – imaginou o fantasma do finado segurando na espinha do próprio corpo (da casca) com medo de sair e ser levado para o seu lar de sofrimento eterno. Os pensamentos de Sebastião foram cortados pela voz de um escravo que estava dentro do buraco escavado. Havia ainda um outro, que estava de pé ao seu lado, com o defunto enrolado no pano seboso logo à frente, no chão.

– Terminei, senhor. Metro e meio.

– Está mais que bom – disse Sebastião. Ele olhou em volta, a menos de dois quilômetros estava a casa grande; não havia nada à vista naquela paisagem que não fosse mato alto. Eles procuraram um lugar escondido no mato, as ordens, como de costume, eram de enterrar os corpos dos escravos bem longe e bem fundo. Sebastião não gostava daquela tarefa, por isso, dois quilômetros de distância e um metro e meio de profundidade era bem longe e bem fundo para ele. Ele virou-se para o escravo que estava ao seu lado. – Jogue o corpo no buraco e comecem a jogar terra.

Obediente, sem esperar o outro terminar de sair do buraco, o escravo que estava de fora, agachou-se e empurrou o corpo que estava enrolado em um lençol sujo de urina e terra. O pacote caiu no fundo do buraco com um som abafado. Algo mais se quebrou com o impacto, talvez o osso nasal ou frontal do falecido.

Terminado de enterrar o corpo, Sebastião mandou que batessem bem a terra. Depois, com um ato de desprezo desabotoou as calças, colocou seu membro fedido para fora e urinou um líquido quente e viscoso sobre o solo batido. Enquanto sacolejava seu membro e o recolocava no lugar resmungou algo que foi ouvido pelos escravos como seu bastardo, filha da puta sem sorte, nasceu escravo, morreu escravo.

Na volta para a casa grande, Sebastião ia a cavalo e os dois escravos com os punhos amarrados em cordas de cipó iam andando, puxados, cada um de um lado. No caminho ele desviou um pouco da rota para poder chegar até uma mercearia já quase dentro do pequeno vilarejo. A garganta pedia uma cachaça. Ele amarrou o cavalo cor de canela na haste do lado de fora da mercearia e os dois escravos continuaram amarrados ao cavalo, cabeças abaixadas e pés descalços. Não estavam nus, mas o tecido que lhes enrolava a cintura de forma a parecer uma calça era tão surrado que chegava a ser muito fino e quase transparente, de tal modo que quando estavam contra a luz era possível ver-lhes os contornos ou mesmo quando o vento batia e o tecido se colava ao corpo era possível ver a silhueta de suas partes de baixo.

Um menino gordo que comia torrões de açúcar coloridos, próximo a um acento de madeira, viu os dois e se ocupou de juntar e atirar contra eles pequenas pedras. Sebastião, antes de entrar de fato no comércio, ao ver a cena, apontou para o gordinho com o indicador, fazendo cara feia. Mas não disse nada. O menino parou instantaneamente, corado, mas voltou a atirar pedrinhas nos escravos assim que o capataz entrou na mercearia.

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