Meu nome é Marcela. Do fundo do meu coração, espero que você já saiba disso, mas tudo bem se não souber. Ao longo das próximas páginas você poderá me conhecer, ainda que talvez não seja capaz de me decifrar. Não existem muitos iguais a mim por aí, mas os poucos que existem são, assim como eu, sobreviventes. Em um mundo corrompido como o nosso, corajoso é aquele que nada contra a corrente. E que luta.
O título de Rainha do Pouco Caso me foi dado pela Nina, minha melhor amiga. Ela surgiu na minha vida quando ainda éramos crianças. Ela era a aluna nova do colégio e, logo no primeiro dia, foi ridicularizada por causa do seu peso. Eu, a despeito de pesar bem menos do que meu médico chamava de "peso ideal" e ter ossos salientes em todas as partes do corpo, me meti na história e jurei quebrar a cara dos três moleques que a estavam perturbando. Mal sabia que esse era o início de uma amizade para toda a vida...
A história que pretendo lhes contar talvez tenha um final feliz... Quem sabe?! O começo, sinto lhes informar, não é dos mais agradáveis. Sinceramente, nem sei se gostaria de compartilhá-lo com o mundo, mas há uma voz dentro de mim que está cansada de ser sufocada e de sofrer sozinha.
Eu tinha dez anos. Estava obcecada por roupas de Barbie, empadas de queijo nas manhãs de domingo, seguidas de carrinho bate-bate. Nem sonhava com o primeiro beijo, menos ainda com as coisas que poderiam vir depois dele. Não vivia a era digital nem nada do tipo e ser criança ainda era tudo o que eu mais queria. E exatamente o que me foi roubado. Foi numa tarde qualquer, dentro de uma sala de cinema fria e escura. Estava muito gelado e minha prima, que estava acompanhada do namorado (a quem eu tinha como um pai), me ofereceu o seu casaco para esquentar minhas pernas, já que eu estava de saia. Fiquei agradecida. Mal as luzes se apagaram e meu inferno particular começou... O homem de quem eu tanto gostava, começou a acariciar minhas finas coxas por baixo da jaqueta branca. Senti um alerta sendo disparado dentro da cabeça (e principalmente dentro do peito), mas não fazia ideia do que estava por vir. Ainda iria piorar. E piorou.
Suas mãos, três vezes mais velhas e maiores que as minhas, subiram dolorosa e cruelmente por entre minhas coxas de menina e invadiram minha calcinha. Congelei. Não sabia o que estava acontecendo, nem o que ele queria com aquilo, mas sabia que era errado. Se eu não podia expor minhas partes íntimas, ele não deveria tocá-las, não é mesmo? Então por que ele insistia em fazê-lo? Diante da confusão, da angústia e do medo, a menina de dez anos que eu fui, que nunca foi preparada para algo do tipo, não encontrou voz para pedir ajuda. Ela se calou e pelas duas horas seguintes sofreu angustiada. As carícias lhe despertavam nojo, culpa e uma dor com as quais ela não poderia lidar, nem se quisesse. Quando os créditos começaram a rolar e as luzes se acenderam... Dois segundos de alívio, que logo viriam a acabar.
"Eu gosto muito de você. Foi um gesto de carinho. Ninguém precisa saber. Vai ser o nosso segredinho", ele disse mais tarde, no estacionamento. Quando cheguei em casa, sem nem conseguir falar direito, me tranquei no banheiro e tomei um banho de quase meia hora. Esfreguei minha intimidade diversas vezes na tentativa de limpá-la. Não aconteceu. E não importava quantos banhos eu tomasse, eu continuava a me sentir imunda. E eu queria tanto pedir ajuda. Mais que isso. Eu precisava tanto de ajuda! Mas quem acreditaria na fantasiosa menina de dez anos que, além da Nina, tinha apenas amigos imaginários?! Quem daria ouvidos a sua frágil e inocente voz? A partir desse fatídico dia, nunca mais tomei banhos rápidos. Além de precisar desesperadamente tentar me limpar, com a porta trancada e o barulho da água eu podia chorar em paz. E então chorei... Infinitas vezes desejando, secretamente, que alguém ouvisse meu choro. Que alguém notasse que o brilho dos meus olhos de menina havia sido roubado. Que minha inocência se esvaía pelo ralo junto com a água desperdiçada. Minha mãe e minha prima notaram meus banhos demorados. E reclamaram. Ninguém deu importância ao motivo deles. Também parei de usar saias. Só por segurança. Deixei a vaidade passar longe por um período, não queria chamar a atenção... Como se a culpa fosse minha!
Precisei conviver mais longos anos com o homem que corrompeu a sonhadora menina que queria ser presidente. E atriz. E cantora. E médica. E advogada. E escritora. Ela queria ser tudo, queria poder mudar o mundo, mas depois do que lhe aconteceu, tudo que mais queria era poder ser quem costumava ser antes desse pesadelo começar. Tudo que ela mais queria ser era a menina que se preocupava com vestidos rodados de Barbie e empadas de queijo nas manhãs de domingo, seguidas de uma bateção de carrinhos divertida. Tudo que ela mais queria... Tudo que EU mais queria, era ser a menina que deveria ter sido.
Pelos anos seguintes, muita dor foi sufocada. Meu agressor nunca mais me tocou, mas não importava, ele já havia roubado a melhor parte da minha alma. Restaram apenas os cacos. Cacos que nunca fui capaz de juntar. Tive uma adolescência conturbada... Minha mãe nem imagina. Mas foi só depois de adulta que percebi e confessei para mim mesma que eu precisava de ajuda; que não podia mais suportar aquela dor sozinha e calada; que não podia ignorar os pesadelos onde eu revivia aquela fatídica tarde na sala de cinema; que não estava certo cair no choro cada vez que alguém me tocava de forma mais íntima. Foram anos de terapia em busca de libertação. Carrego as memórias até hoje comigo; não sou ingênua de acreditar que elas, algum dia, me deixarão. Já desejei sofrer um acidente para, com sorte, perder a memória, mas isso também nunca aconteceu. Ao invés de esquecer, precisei aprender a conviver e lidar com a dor. Não é fácil e nunca será. Mas eu resolvi lutar. Cada veia do meu corpo é feita de luta. Cada palavra proferida é luta. Cada ação tomada é luta. Tudo o que eu sei ser é luta.
Tanta dor me levou a ser uma guerreira forte e destemida. Percebi que precisava lutar para que outras meninas não passassem pelo que passei; que precisava lutar para que elas pudessem apenas ser crianças. E percebi também que havia outras lutas além dessa. As mulheres sofrem abusos sexuais e psicológicos constantemente, desde que o mundo é mundo. Nossa sociedade, construída em pilares machistas e patriarcais, sempre desacreditou as vítimas e nunca soube como ampará-las. E foi sedenta por essa vontade de lutar, que me tornei quem sou.
Essa é uma história com começo triste. Convido vocês a seguirem comigo em busca de um final feliz.
***
Nota: Esse prólogo foi escrito com o coração apertado. Quem leu "100 dicas para amar seu corpo (como ele é)" sabe que os acontecimentos, infelizmente, foram inspirados em fatos reais (se você ainda não teve a oportunidade de ler o livro acima citado, leia. Está disponível por apenas R$1,99 na Amazon). Nas próximas páginas, espero que juntos, possamos encontrar o final feliz da nossa sobrevivente Marcela, pois eu felizmente já encontrei o meu.
Tô meio emotiva (talvez porque hoje seja meu aniversário também), mas só quero agradecer a todo mundo que tá embarcando em mais essa aventura comigo. Vai ser lindo e eu preciso muito do apoio de vocês <3
Obrigada!
VOCÊ ESTÁ LENDO
Rainha do Pouco Caso
ChickLitTerceiro e último livro da série Poder Extra G. | Os livros são independentes: o primeiro (Poder Extra G) é narrado pela Nina; o segundo (Singular) é narrado pelo Noah; o terceiro (Rainha do Pouco Caso) é narrado pela Marcela. Lançamento: 20/12/18 |...